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Thiago Martins de Melo

 

 

Textos

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OUROBOROS SUCURI

Gunnar B. Kvaran, 2021

Tenho o prazer de acompanhar o extraordinário desenvolvimento e as realizações de Thiago Martins de Melo há mais de uma década. Testemunhei como ele conseguiu alcançar habilidades notáveis como pintor. Ele dominou as diversas técnicas da pintura figurativa, criou novos tipos de estruturas narrativas, que se articulam na tela em macro e micro histórias, tempos e lugares divergentes, e uma mistura de ficção e realidade. Seus trabalhos mostram a riqueza de seu conhecimento e sua cultura – intelectual, espiritual e intuitiva – e o seu próprio desenvolvimento e crescimento individuais.

 

No início, as pinturas de Martins de Melo se relacionavam com a sua experiência pessoal e familiar, com o seu entorno mais próximo. Posteriormente, expandiu a sua visão para incluir a complexidade da sociedade brasileira, chegando a colocá-la, junto com a sua iconografia, num contexto global. As pinturas abraçam o mundo e a vida íntima do artista ao mesmo tempo. Elas são sempre concebidas e construídas em camadas de símbolos e figuras que lhe permitem incluir elementos heteróclitos da realidade e além. A vida concreta, histórica e social, está sempre presente, mas há também uma dimensão espiritual e religiosa, onde atuam energias e forças que não pertencem ao nosso mundo terreno. Há também a política, uma forma de resistência que revela os mecanismos internos da injustiça e da discriminação social. Martins de Melo se preocupa com os seus compatriotas, especialmente os marginalizados da sociedade brasileira, nomeadamente as populações indígenas. No entanto, orientado pela noção de “sincretismo”, ele consegue estender o seu discurso a uma cena mais universal, onde os signos, os símbolos e os diferentes elementos cosmológicos assumem um sentido mais aberto, de amplo campo semântico, ancorado em diversas realidades de diferentes épocas da humanidade.

 

Em seu ambicioso projeto como artista e contador de histórias, Martins de Melo ampliou e reinventou a noção de pintura ao transformar suas cenas pictóricas em animações e objetos escultóricos, ou experiências teatrais. Em suas obras, muitas narrativas acontecem simultaneamente envolvendo acontecimentos e pessoas reais, e forças espirituais, mas sempre com um profundo senso estético e uma preocupação pela coerência e pela clareza. Suas imagens fortes e poderosas são apropriadas, criadas, e então colocadas em diálogo na tela. Na maioria das vezes surgem de sua imaginação, inspiradas pelo folclore, pelos mitos antigos e eventos sociais históricos, cruéis ou sublimes. Seja qual for o assunto, pode-se sentir em suas obras o prazer de pintar, como ele manipula os materiais e os pincéis com sensualidade e satisfação.

 

Esta exposição apresenta um momento no tempo da obra de um artista que se encontra em uma contínua e poderosa trajetória. Ele abriu e ampliou seus objetos e suas abordagens pictóricas. Somos confrontados com obras de grande complexidade em termos de temas e soluções formais. Encontramos motivos fortes e recorrentes como a serpente, um símbolo local e universal que cruzou religiões e tempos históricos e apareceu em várias obras de mestres mais antigos e contemporâneos. A primeira parte desta exposição apresenta uma seleção de trabalhos onde o artista revisita esse motivo da serpente, que lhe dá o título Ouroboros Sucuri. Na segunda parte, selecionamos uma constelação de novas obras; esculturas e pinturas que mostram a experimentação em curso do artista em relação a novidades formais e narrativas inovadoras, que abordam a cultura, o espiritismo, o ocultismo, os mitos e a política dentro de um discurso pós-colonial. Juntos, formam uma construção complexa, onde o espectador passa por diferentes zonas da ficção baseada na realidade. É essa fusão de signos e símbolos religiosos e espirituais e referências sociais e políticas da memória coletiva que carregam essas obras com a sua energia singular e que as inserem na grande tradição da pintura histórica.

 

Embora as obras de Martins de Melo sejam convidativas, sedutoras e intrigantes, requerem um certo tipo de interpretação do espectador. Por isso, pensamos que seria esclarecedor deixar o artista falar por si e nos contar sobre as suas referências e seus ingredientes pictóricos mais importantes. Bem-vindo ao pensamento de Thiago Martins de Melo.

ENTREVISTA COM THIAGO MARTINS DE MELO POR GUNNAR B. KVARAN

2021

          GBK

Onde você nasceu? Conte-me sobre o lugar, sua família, a origem de seus pais, de seus avós. O que eles fizeram/fazem?

          TMDM

Nasci em São Luís, capital do estado do Maranhão, um estado de população predominantemente negra e indígena; um estado geograficamente híbrido dentro de uma área amazônica, mas pertencente à região nordeste do Brasil.

Sou filho de mãe maranhense e psicóloga; pai pernambucano e pintor. A família do meu pai é muito antiga no Brasil, remonta ao século 17, à colonização holandesa, eram proprietários de fazenda de cana-de-açúcar. A família de meu pai teve algumas figuras muito aventureiras em sua história. A família da minha mãe é relativamente recente no Brasil: suas raízes remontam ao século 19, com migrantes da Península Ibérica que compraram terras na região.

Meus avós paternos são pernambucanos e alagoanos. Eles sempre foram muito independentes, tanto intelectual quanto emocionalmente. Minha avó escrevia poesia e era uma leitora voraz com uma personalidade muito expansiva. Meu avô tinha formação técnica em eletrônica. Ele era boxeador e durante sua aposentadoria tornou-se fazendeiro; ele é até hoje. Eles moraram em São Paulo antes de voltar para o Nordeste, depois de mais um episódio exótico do meu avô.

Meus avós maternos já faleceram. Eram figuras mais austeras, pertenciam a uma classe mais rica, mas eram bem solidárias socialmente. Minha avó era uma católica zelosa e meu avô, um protestante austero. Apesar da diferença religiosa, nunca brigaram e eram típicos exemplos da família patriarcal proprietária de terras.

 

          GBK

Que tipo de artista foi seu pai?

 

          TMDM

Meu pai foi um pintor figurativo. Seus principais temas eram arquitetônicos. Suas pinturas tinham camadas espessas de tinta, na maior parte das vezes aplicadas com espátula.

          GBK

É assim que a arte entra na sua vida?

 

          TMDM

Sim. Convivo com a pintura desde que nasci. Tenho lembranças bem antigas de meu pai misturando pigmentos em pó de várias cores com óleo de linhaça e outros materiais; as espessas camadas de tinta a óleo em seu estúdio, e eu enxergando monstros e batalhas nessas enormes camadas enrugadas. Havia livros de pintura por toda parte. Graphic novels, livros de arte e livros de fotografia eram muito comuns em casa. Aprendi a ler muito cedo com as histórias em quadrinhos, e fiquei hipnotizado pelo cinema. Comprei revistas de cinema quando tinha 6 ou 7 anos e gravei filmes em VHS. Escrevi histórias e desenhei quadrinhos nessa idade. Meu maior interesse era cinema. A pintura só se tornou uma paixão aos 16 anos.

          GBK

Quando você decidiu estudar arte?

 

          TMDM

Quando eu tinha 16 anos, decidi estudar arte e fui para o ateliê de Cordeiro do Maranhão, um artista maranhense que morava no Rio e estudava há anos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Tive uma boa introdução à história da arte e comecei a me interessar por arte contemporânea. Aos 18, fui admitido no curso de artes visuais da Universidade Federal do Maranhão, mas nunca terminei. Fui jubilado por não ter me formado a tempo: eu ia e vinha há quase 8 anos. O curso era fraco, com exceção das disciplinas humanísticas, que me influenciaram muito. Migrei para a psicologia e construí uma curta e medíocre trajetória acadêmica nesse campo. Meu interesse inicial era estudar antropologia, mas acabei estudando psicologia paralelamente às artes visuais. Depois de me formar, fiz o mestrado na Universidade Federal do Pará. Comecei o doutorado, mas o abandonei anos depois, quando me dediquei exclusivamente à arte.

          GBK

Quem eram os principais artistas contemporâneos do Brasil e do seu próprio entorno naquela época?

 

          TMDM

Não sei quem foi o mais influente, mas posso dizer que Tunga, Nuno Ramos, Antonio Dias, Mario Cravo Neto, Emmanuel Nassar, Miguel Rio Branco, Artur Barrio, Nelson Felix e Cildo Meireles estavam ativos naquele período e foram os mais influentes para mim.

 

          GBK

E quem foram as suas referências artísticas internacionais quando você começou a fazer arte?

 

          TMDM

Muitas das minhas referências na época permanecem basicamente as mesmas de hoje. Muitas delas estavam além do campo da pintura. Eu me interessei por literatura, cinema, história em quadrinhos, bem como ciência política, antropologia, sociologia, psicologia, filosofia e história. Era fascinado pelos escritos e pelas obras de pessoas como Glauber Rocha, Tunga, Jörg Immendorff, Matthew Barney, Jung, Georges Bataille, Eduardo Viveiros de Castro, José Clemente Orozco, David Alfaro Siqueiros, Portinari, Marx, Lenin, Trotsky, Otto Dix, Jodorowsky, Debret, Martin Kippenberger, Raymond Pettibon, Zulawski, Markus Lupertz, Delacroix, George Grosz, Tarkovski, Darcy Ribeiro, Pedro Juan Gutiérrez, Jorge Amado, William Blake, Akira Kurosawa, Suehiro Maruo, Philippe Druillet, Philippe Moebiefer, e muitos outros.

 

          GBK

Quando você considera o início de sua carreira como pintor, e aconteceram conexões entre seus estudos psicológicos e sua arte?

 

          TMDM

Apesar de ter participado em vários projetos institucionais desde os 16 anos, considero que a maturidade da minha produção começou a se estabelecer em 2008. A psicologia teve um papel preponderante na forma como via o signo pictórico e na articulação de narrativas visuais.

 

          GBK

Você pode falar mais sobre esse papel desempenhado pela psicologia?

 

          TMDM

Vou ter que voltar um pouco para o início da minha produção para falar sobre isso. Nos anos 1990 e início dos anos 2000, no Brasil, a narrativa raramente era vista na pintura. A pintura era formalista até os ossos. Pintura figurativa e composições que incluíssem micronarrativas não eram vistas quando voltei a pintar em 2008, depois de ter atravessado um período de depressão. Curiosamente, em 2008, muitos jovens pintores figurativos ganharam visibilidade. Na época, eu tinha o título de mestre em análise do comportamento e, apesar de ser uma área empírica-analítica, meu interesse pelas humanidades foi crescendo. Então, abordei clandestinamente a psicologia social e, mais secretamente, Jung, que desempenhou um papel muito importante no modo como eu encarava o signo pictórico. A compreensão da importância da construção simbólica me fez refletir sobre meus próprios interesses espirituais. Tive experiências de espiritismo na família desde a infância, tanto o espiritismo kardecista quanto a religiosidade afro-brasileira. Essa visão de mundo espiritual afro-brasileira me apresentou ao sincretismo, o que sempre me intrigou. Então me interessei por tarô e outros oráculos. A união com minha primeira esposa Viviane foi providencial nesse sentido. Entre 2008 e 2011, minha produção esteve imersa em questões pessoais que passaram pela paternidade, casamento, papéis de gênero, espiritualidade etc. Até que meus interesses foram cada vez mais direcionados da micropolítica para uma compreensão do mundo que passa pela luta social.

 

          GBK

De que forma a união com Viviane foi providencial? Você fez algumas imagens poderosas retratando a si próprio e Viviane como atores principais. Foi só nas pinturas ou na vida também – você fez alguma ação política fora da tela, na sociedade?

 

          TMDM

Ela foi uma pessoa muito importante e uma virada existencial para mim. Muitas das promessas de luta e alianças políticas que tenho hoje começaram com sua influência. Foi tudo muito intenso! O período em que vivi com Viviane foi um período de elaboração de muitos conflitos pessoais, de me encontrar no mundo.

 

Tínhamos muitos interesses comuns, tanto políticos quanto espirituais. Viviane vem de família espírita, é médium de incorporação e lê tarô desde a adolescência. Ela foi rapidamente aceita por minhas entidades espirituais, incorporando muitas delas, e por meus amigos mediúnicos. A relação entre identidade, luta social e espiritualidade acabou ficando emaranhada nesse relacionamento. Viviane era advogada ambiental e fazia pesquisa de doutorado em uma reserva extrativista amazônica (Resex Tauá Mirim) que estava sob ataque, e isso teve um grande impacto em mim, além de me colocar em contato e aliança com comunidades tradicionais, indígenas e organizações na minha região. Foi um ponto de inflexão no que diz respeito a um compromisso existencial com a luta de resistência.

Atualmente sou filiado a um partido trotskista de trabalhadores chamado PCO (Partido da Causa Operária) e tenho obrigações partidárias. Além disso, tenho um compromisso político e espiritual com a aliança na luta dos indígenas Gamela. Inclusive o filho de Viviane tem como padrinho uma liderança deste povo.

 

          GBK

De que forma o “sincretismo” foi importante para você?

          TMDM

O sincretismo que experimentei no Tambor de Mina – um culto afro-brasileiro aos voduns – foi importante para a compreensão das narrativas dos orixás e voduns africanos em relação a outras narrativas ancestrais humanas como a mitologia grega, nórdica e egípcia. No Tambor de Mina, a leitura do odus é a leitura dos caminhos percorridos inúmeras vezes pela humanidade e que são repetidos constantemente por nós. Os sinais mudam, mas as histórias humanas são sempre as mesmas. Por sincretismo refiro-me ao caldeirão cultural em que existo, onde elementos cosmogônicos de Tupinambá, Jeje, Nagô e da civilização ocidental se fundem para criar um outro mundo. Muitos elementos arquetípicos reaparecem na obra, entre eles o Rebis, o todo universal, o hermafrodita de duas cabeças, a reconciliação simbólica da matéria e do espírito, masculino e feminino, que é representado em minha obra como matrizes que compõem esse novo mundo pós-colonial.

 

          GBK

Você pode me falar mais sobre a importância de Jung?

 

          TMDM

O sistema junguiano é consistente com minha maneira de pensar sobre a imagem e o inconsciente. Minha formação como estudante foi na área mais empírica da psicologia, ou seja, análise do comportamento, psicologia evolutiva e etologia. Meu interesse pela evolução da mente ancestral – agora com a mente de um artista – encontrou no mentalismo junguiano uma chave de leitura que faz muito sentido para mim de uma perspectiva evolucionária. Conceitos como inconsciente coletivo e arquétipo, sonhos e transe, tornaram-me consciente das experiências humanas místicas em todas as civilizações. Devo dizer que minha perspectiva espiritual é muito baseada na mente e em sua base biológica. Sou fascinado por transes mediúnicos, oráculos, signos, mas não acredito em Deus, nem em milagres. Estou interessado na construção do signo e do simbolismo que estão culturalmente enraizados nas tradições, mas faço suas leituras como resultado de processos universais da mente humana a partir de uma perspectiva evolucionária. Mesmo assim, acredito em muitas coisas que acho que serão explicadas pela ciência em um futuro distante.

 

Estou interessado na maneira como o avatar é pensado no hinduísmo e como os caboclos e voduns no culto afroameríndio se apresentam com outra personalidade. Para mim, isso parece muito semelhante ao avatar. Embora os signos sejam distintos, por baixo deles existe um arquétipo que é mais compreensível e universal, uma camada simbólica construída ao longo das gerações. Esta, por sua vez, é a ponta de um iceberg sem fim que é produto de um inconsciente coletivo, uma evolução que nos conecta às bases da vida na Terra. Por isso, todos os métodos de leitura do mundo, sejam construções oraculares ou simbólicas, têm bases muito profundas. Em nossas mentes fragmentadas, eles aparecem em migalhas, mas se combinam em uma perspectiva mais ampla.

          GBK

Quem eram os outros intelectuais e escritores que você estava lendo na época?

 

          TMDM

É importante notar que em 2007 eu estava em um processo de iniciação ritualística no Tambor de Mina, e minha mente foi dividida em duas. Um lado estava preocupado com estatística e empirismo devido à minha área de especialização na academia na época, e o outro oscilava entre estudos culturais, arte e espiritualidade. Os livros que eu estava lendo nessa época (alguns dos quais ainda tenho sempre à mão) eram, por exemplo: O livro vermelho e Memórias, sonhos, reflexões, de Carl Jung; The Art Instinct [O instinto da arte], de Dennis Dutton; Quebrando o encanto, de Daniel Dennett; Armas, germes e aço, de Jared Diamond; O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro; Mitologia dos orixás, de Reginaldo Prandi; O local da cultura, de Homi Bhabha; Odisséia, de Homero; Satyricon, de Petrônio; História do olho, de Georges Bataille; O manifesto comunista, de Marx e Engels; Espelho índio, de Roberto Gambini; A inconstância da alma selvagem, de Viveiros de Castro; Desceu na guma, de Mundicarmo Ferretti; I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias; Animal tropical, de Pedro Juan Gutiérrez. Existem muitos outros, mas esses são trabalhos que ainda hoje ressoam em mim.

          GBK

Você vê ligações conceituais entre literatura, cinema, teatro e até mesmo entre liturgia e outros rituais espirituais?

 

          TMDM

Sim, vejo essa relação com outras linguagens e formas de arte em ação o tempo todo. Em pinturas, por exemplo, posso ver claramente referências compositivas que vão desde histórias em quadrinhos até o tarô. Em meus vídeos em stop-motion, as referências audiovisuais tornam-se mais difíceis de discernir. Claro que o cinema é a referência, mas essa referência se mistura com videoclipes, quadrinhos, curtas de animação experimental e literatura na composição dos roteiros. Para mim, é muito difícil dizer de onde obtenho minhas referências porque vejo muitas coisas ao mesmo tempo e absorvo tudo e misturo tudo e, no processo, as pegadas do original desaparecem. Minha experiência visual e ter nascido em uma região muito híbrida culturalmente, indígena, afro-descendente e euro-descendente, muito me influenciaram. Os elementos do catolicismo popular e os cultos afro-ameríndios são visualmente agressivos em termos de cor. Os altares do Tambor de Mina combinam imagens de entidades cristãs, africanas e indígenas. Na estrutura sincrética dos cultos, as missas em latim são seguidas por tambores africanos e cantos na língua fon, e os chocalhos e a música indígena se harmonizam nesse território. Acredito que ter sido criado sob a influência dessa visualidade barroca do Brasil (América Latina, terceiro mundo), em uma região na fronteira do capitalismo, possibilitou-me digerir diferentes linguagens com mais naturalidade.

 

          GBK

A cultura visual, oral ou escrita dos indígenas inspirou você?

 

          TMDM

A abordagem mais direta do aspecto ameríndio abordado nas pinturas e filmes está nas narrativas de luta anticolonial, resistência ao extermínio e nas narrativas transcendentais (espirituais) elaboradas nas lutas políticas, visto que meu interesse é apropriar-me da complexa história do mundo e recontá-la a partir do meu próprio umbigo. Não posso dizer que fui diretamente influenciado visualmente ou que me apropriei de alguma coisa neste caso. As obras em que tratei diretamente de questões de etnia foram realizadas em coautoria com a comunidade. É o caso de uma obra chamada Gamela Sumak Kawsay, por exemplo. Além disso, muitas referências indígenas que aparecem em meu trabalho estão ligadas aos cultos afro-brasileiros aos quais pertenço: caboclos (a palavra é usada para pessoas mestiças de brancos com indígenas, mas nos cultos afro é usada para designar ameríndios, muitas vezes com a estética do índio da América do Norte). Os inquices ou nkisis são entidades africanas ligadas à terra. Quando os africanos chegaram, não puderam trazer essas entidades porque elas pertencem ao território, então quando eles chegaram, os ameríndios se tornaram seus nkisis, daí a influência indígena nos cultos bantu no Brasil. Algumas narrativas relacionadas à onça e à cobra são comuns no imaginário popular latino-americano e brasileiro. Por sermos um povo mestiço, muitas narrativas espirituais, míticas e lendárias são fusões de narrativas europeias, indígenas e africanas, com as mesmas histórias contadas de maneiras diferentes em muitas regiões. Também fui muito influenciado pela iconografia hermética e pela alquimia, assim como pelo tarô. Existem elementos compartilhados com minhas influências sincréticas que me ajudam a construir esse universo. São influências que sempre estiveram dentro de mim para pensar na obra como algo mais do que ela representa. É importante dizer que, por mais que eu determine alguns signos e um caminho pelo qual estou lidando, não tenho controle total sobre o trabalho e não o quero. Sempre acreditei que minhas pinturas podem falar comigo ao longo dos anos, como se estivessem brincando com o tempo.

          GBK

Suas obras também começaram a abordar a política a partir de 2011–2016 (com pinturas como Teatro nagô-cartesiano). O que desencadeou sua consciência política?

 

          TMDM

É difícil dizer. Minha mãe sempre trabalhou na área social. Ela era psicóloga social, trabalhava no sistema prisional e isso me forneceu desde muito jovem um imaginário influenciado por relatos de violência e caos social. Mas foi só com o engajamento de Viviane, minha primeira esposa, que a ação política se tornou quase um imperativo moral. Viviane trabalhava como advogada voluntária para comunidades tradicionais que não tinham a quem recorrer e os problemas começaram a entrar em minha casa.

 

          GBK

Você se descreveria como um artista político?

 

          TMDM

A denominação de artista político tem origem externa. Eu me considero apenas um artista, mas entendo que minha abordagem crítica leva a essa redução por grande parte do público.

 

          GBK

Como você descreveria a situação política no Brasil com a qual você está lidando em suas obras?

 

          TMDM

A situação no país piorou rapidamente após o golpe parlamentar que destituiu Dilma. Se no passado lutamos contra o desenvolvimentismo no país e contra a cooptação de líderes da resistência, hoje lutamos pela vida de nações indígenas inteiras e contra um Estado que abandonou o desenvolvimento para exterminar qualquer grupo minoritário que pretenda levantar-se contra ele. Políticas públicas construídas ao longo de décadas foram destruídas, assim como qualquer intenção de projeto para o país. Todo o universo distópico que expressei na minha produção passou do pesadelo para a realidade. Este é o período mais sombrio da história do Brasil desde os primeiros anos da ditadura militar.

 

          GBK

Em suas obras, você denuncia a opressão política, a corrupção, o racismo, e clama por justiça social. Suas pinturas são como manifestos ou mapas de estradas que evocam ações de guerrilha urbana. Você pode me dizer quais formas de resistência e quais ações você acredita que podem mudar a situação política?

 

          TMDM

A situação da luta de esquerda e anti-stablishment é mais complexa e caótica do que nunca. Vivemos em uma época em que a era do capital produtivo está em agonia e as corporações têm mais poder do que os países. Ministros de Estado se tornaram lobistas dessa entidade chamada “mercado” e a caracterização dos trabalhadores, dos pobres e dos povos tradicionais não é mais tão definida como era no século 20. A crescente desindustrialização, a uberização do trabalho, a assimilação da identidade pelo stablishment, fragmentam ainda mais a resistência. A América Latina, e o Brasil em particular, têm sofrido com o desmantelamento do Estado social e uma guerra híbrida onde a mídia corporativa usa a divulgação de notícias falsas nas redes sociais para alavancar plataformas políticas alinhadas com interesses privados e antidemocráticos como instrumentos de grupos financeiros. Tudo isso aumenta a intensidade dos ataques aos direitos e à própria existência, que se opõe a um campo fragmentário de resistência cujos elementos se chocam por uma falha de coesão. O neoliberalismo já cruzou a linha vermelha e já estamos no caminho da destruição ambiental e humana. A história nos mostra que em tempos extremos ocorrem revoluções e mudanças radicais, mesmo que não tenham sido devidamente organizadas, porque a sobrevivência é um instinto natural e as coletividades sempre se elevam quando levadas ao extremo. Não vivemos mais na era das revoluções armadas internacionalistas, embora haja algumas revoluções ao redor do mundo, entre elas a revolução maia-zapatista em Chiapas, México, da qual admiro muito. No cenário nebuloso que eu tenho, essa é a única certeza: a insurgência popular em várias partes do mundo. Mas o que vai emergir dela pode ser a continuação de um ciclo de infortúnios que mantenha o caminho da destruição de nossa própria existência ou um caos que nos leve a uma nova organização entre os povos e a uma nova economia do mundo que esteja sujeita aos interesses dos povos e não aos de uma pequena elite global.

 

          GBK

As pinturas parecem obras baseadas em colagem. Você faz colagens primeiro, ou esboços, ou tudo acontece no ato de pintar?

 

          TMDM

Eu uso muitas referências visuais, bem como pesquisas literárias sobre assuntos que abordo em minhas pinturas. O processo é muito variado e não é rígido. Parto do interesse por um tema ou imagem, e amplio em esboços à mão, referências visuais sobre o assunto, outros temas afins, criando conexões entre signos. Nesse processo, as composições são naturalmente modificadas em uma negociação entre forma e conteúdo. Costumo cobrir áreas inteiras da pintura com elementos, apagando ou adicionando. Minha desorganização contribui para um processo intuitivo, pois muitas vezes mudanças substanciais são feitas durante o próprio processo. Por mais que eu planeje elementos e diálogos de forma esquemática entre micronarrativas, é na sua própria feitura que o trabalho decide o que será. Ultimamente tenho feito muitos exercícios de colagem digital, mas eles não são nada rígidos porque acredito que muitas coisas devem ser deixadas para serem resolvidas no fazer e nos insights que isso pode trazer.

 

          GBK

Como você constrói a estrutura narrativa na tela?

 

          TMDM

Eu costumo dividir os elementos entre planos, figura e fundo, então uso diferentes níveis de textura, diferentes estilos de pintura, dividindo em camadas, tentando criar espaços na tela onde os elementos possam dialogar entre diferentes tempos. Às vezes recorto elementos pintados a óleo e os insiro em partes da composição, colando-os na tela, literalmente. Essa relação também ocorre quando adiciono esculturas ou telas de TV sobre a pintura.

 

          GBK

Tem-se a impressão, pela maneira como você aplica o pincel, que pinta na primeira pessoa. Você está “conversando” diretamente com o público ou é mais um contador de histórias?

 

          TMDM

Essa é outra pergunta difícil de responder. Não acho que pinto para o público, porque minha motivação inicial sempre foi elaborar perguntas no plano visual que fizessem sentido para mim. Não posso lidar com um trabalho que é apenas uma resolução formal, porque para mim tem que ser pessoal em um nível de verdade que faça sentido para mim. Então eu os vejo como problematizações, mais do que contar a história em si, porque não procuro focar em fazer alegorias de uma história já contada. Não sei como explicar com mais clareza, mas vejo o processo como uma arena onde esses signos se relacionam em uma construção narrativa aberta, ainda que tenha pontos conceituais claros. Acho que estou falando com o público, mas não tenho certeza disso.

 

          GBK

Em sua composição, você costuma brincar com escala e fragmentos, inventando micronarrativas dentro de cenas e visões maiores. A noção de híbrido é importante em seu trabalho. Que tipo de papel e significado isso tem em suas narrativas?

 

          TMDM

Ele desempenha um papel fundamental. A preocupação com o significado dos elementos em jogo, assim como com a criação de símbolos, tem uma importância acima da própria resolução formal. Ou seja, às vezes sacrifico soluções formais interessantes para evitar cair na entropia. No começo, os temas foram desenvolvidos a partir de questões do ambiente doméstico que dialogavam com arquétipos de narrativas cotidianas relatadas na literatura clássica ou em mitos. Neste momento tenho a ambição de chegar a uma metanarrativa que possa ser lida como um arquétipo. Ao mesmo tempo, fico fascinado pela natureza barroca do ambiente que me rodeia, muitas vezes interpretado como precário. Cercar-me de signos e poder jogar com eles em uma arena (do plano ou da pintura expandida ao 3D e à arquitetura) é o que me obriga a continuar a produzir. Não é um discurso definitivo, mas problematizador que me permite enriquecer ainda mais o universo que crio.

 

Usar os recursos da pintura expandida como esculturas, elementos 3D e composições que flertam com a arquitetura me permitem adicionar outra camada de complexidade ao assunto, e torná-lo mais palpável, embora no final o exercício seja sempre mental. Também admito um certo grau de ansiedade em materializar ideias em fluxo, o que em si é uma tentativa impossível.

De qualquer forma, acredito que meu método seja muito diferente do método da maioria dos artistas porque, apesar de estar imerso em imagens, sempre tomo como ponto de partida questões do universo humano que me interessam naquele momento. Não sei se posso dizer com certeza, mas boa parte do meu trabalho advém de uma verbalização interna, de um diálogo verbal, palavras que se transformam em imagens. Claro, o processo inverso ocorre muito: ou seja, imagens que emitem o verbo. Esse exercício nunca é definitivo, mas acho importante destacar como o discurso orienta a construção das imagens. É muito mais provável que eu sacrifique uma composição que contradiga as direções semânticas que quero tornar explícitas do que eu sacrifique o discurso.

          GBK

Suas pinturas expressam claramente seu desejo de se comunicar, mas também se pode ver uma sensualidade cada vez maior, senão erotismo, em sua tinta úmida e espessa e na maneira como você manuseia seus pincéis. Você está ciente dessa sensualidade?

          TMDM

Sim, estou ciente disso. A pintura, para mim, tem a ver com desejo e isso tem a ver com a forma como eu o materializo. Gosto muito de pintura em camadas e, sim, acredito que seja algo sedutor para o espectador que aprecia a produção de pinturas.

 

          GBK

Ao desenhar as imagens em suas telas, principalmente as citações, você usa um projetor?

          TMDM

Raramente. Usei-o com mais frequência em minha produção de 2009 a 2010. Depois disso, só voltei a usar em 2019 em algumas pinturas da série Necrobrasiliana, onde um assistente projetou e esboçou as imagens iconoclastas da história brasileira para que eu pudesse reproduzi-las nas proporções corretas. As projeções só são utilizadas se procuro reproduzir com fidelidade uma imagem, ou se tenho urgência na produção de uma pintura em grande escala. Acredito que o uso do projetor acaba atrapalhando a espontaneidade da linha. De resto, gosto de esboçar e pintar as composições à mão livre. Meu método varia de tempos em tempos. Fico entediado facilmente e estou sempre mudando as coisas, mas de uma forma mais resumida e objetiva, sempre tenho um esboço com os principais elementos e áreas da composição marcados. No processo, continuo pesquisando imagens e lendo sobre os tópicos cobertos. A pintura costuma ser feita em camadas: primeiro o fundo, depois os elementos pintados na segunda camada e, a partir daí, acrescentando ou recobrindo os elementos de acordo com as resoluções do processo.

 

          GBK

Dentro da narração (e da compreensão do seu trabalho) o que você pode me dizer sobre o papel do espectador?

 

          TMDMA 

A obra não é construída para a retina, mas de uma forma que os signos dialoguem com o arcabouço simbólico do espectador. Minha esperança ao colocar esses trabalhos no mundo é que eles sejam capazes de estabelecer uma conexão com o público de qualquer lugar do mundo. As relações semânticas que o espectador estabelece devem orientá-lo para narrativas que já existem no mundo e através dos tempos, uma vez que as histórias do mundo são sempre as mesmas.

 

          GBK

Quando você planeja suas narrativas combinando diferentes signos e símbolos, você almeja criar uma história total, coerente, lógica e completa, ou intencionalmente deixa “buracos” em sua narração, um espaço para o espectador?

 

          TMDM

Minha intenção é que a obra cresça sempre no diálogo com o espectador. Fechar a narrativa por completo seria, para mim, como matar suas possibilidades transcendentes. Meu processo se contradiz um pouco em relação a essa questão, pois, ao mesmo tempo em que busco no projeto inicial concatenar esses signos de uma forma que oriente uma leitura específica, permito que novas imagens que surgem em minha mente entrem na composição. Ou seja, sempre pretendo traçar diretrizes semânticas que me permitam superá-las no jogo mental, pois uma imagem em relação a outra sempre traçará uma terceira e assim por diante. É assim que acredito que acontece o processo artístico ideal. E esses elementos que podem surgir no processo também se tornam elementos que amplificam ou intrigam o observador, que podem levar o trabalho a lugares que eu não posso ir. E isso é importante, para que a obra permaneça sempre em um diálogo atemporal.

 

          GBK

Conte-me sobre seus métodos de trabalho e rotina. Você faz um desenho primeiro?

 

          TMDM

Na grande maioria das vezes, vou direto com o pincel na tela. Muito ocasionalmente, quando o trabalho precisa ser muito preciso, como quando quero reproduzir fielmente uma imagem, faço um esboço com carvão. Portanto, na maioria das vezes, a pintura é iniciada diretamente com o pincel.

 

          GBK

Você trabalha em um determinado horário – durante a manhã? À noite?

 

          TMDM

O tempo no estúdio variava muito no passado, mas desde 2019, com a instalação do estúdio principal em São Paulo, minha rotina tem sido de oito a doze horas diárias com pausas para alguns dias de descanso. Mas não é incomum eu passar um mês inteiro trabalhando diariamente. O trabalho não é apenas fazer pintura e escultura no estúdio, mas também editar vídeos, ler, buscar referências, conceitos, signos, mitos etc.

 

          GBK

Você trabalha com assistentes e, em caso afirmativo, qual é a função deles?

          TMDM

O trabalho com assistentes era esporádico no passado e limitava-se a técnicos de moldes de escultura, técnicos de gravura, técnicos de cerâmica. Por muitos anos, a pintura foi uma arte solitária, não importa o quão grande fosse. A primeira vez que tive a ajuda de assistentes na produção das minhas próprias pinturas foi em 2019, para a série Necrobrasiliana. Suas atividades iam desde a aplicação de fita adesiva em áreas da tela até a confecção de marcações com carvão a partir de imagens iconográficas projetadas da história do Brasil. Hoje, a pintura continua sendo um ofício solitário, mas tenho assistentes especializados em escultura e vídeo que trabalham comigo nessas áreas. A equipe varia de quatro a sete pessoas, dependendo da demanda de trabalho. Existem quatro assistentes permanentes.

 

          GBK

Que tipo de material você usa: papel, tela, cores e pincéis de alta qualidade, ou o que estiver disponível?

 

          TMDM

Tintas a óleo de alta qualidade, tela de linho e algodão, pastéis a óleo de boa qualidade, aquarela de boa qualidade, lápis de cor de qualidade, pastéis secos, tinta spray de boa qualidade, pistola de compressão de ar de fibra de vidro, poliuretano, massa plástica, plastilina, diferentes tipos de papel, softwares de edição, iPad etc. Embora eu sempre tenha pincéis de qualidade, não cuido bem deles e sempre me vejo usando pincéis velhos. O mesmo acontece com as espátulas. Há uma certa autoindulgência e presunção em fazer bom uso deles, mesmo que não estejam em boas condições.

 

          GBK

Você escreve narrativas baseadas em texto? Você mantém um diário?

 

          TMDM

Sim, às vezes escrevo sobre meu trabalho para esclarecê-lo melhor. Não mantenho um diário, mas tenho muitos cadernos e desenhos aleatórios. Tudo é muito caótico nessa área.

 

          GBK

O que é uma imagem forte para você?

 

          TMDM

Eu acredito que esses episódios esparsos nos quais surgem imagens prontas, são o produto de pesquisas anteriores de imagens nas quais meu cérebro continua trabalhando, mesmo quando minha atenção está em outra área. Isso é algo já comumente entendido no processo criativo. Essa questão de escolher imagens fortes é algo que está comigo desde o início. Acontece de uma forma muito natural. Eu teria que pensar mais sobre essa questão para obter uma resposta satisfatória, mas posso dizer que as imagens simbólicas na maioria das vezes são fortes. Um exemplo são os arcanos do tarô: as cartas impressionam fortemente o neófito por meio dos signos ali representados. Desde o início, tentei tirar os sentimentos de vergonha ou zelo moral do meu processo criativo e tentei usar as imagens mais honestas possíveis. No começo, eu tinha isso de forma radical no meu método. Identifiquei como moralidade pequeno-burguesa qualquer vergonha em representar estupro colonial ou violência de gênero nas obras. Ainda hoje, essas questões persistem. É a minha ética de trabalho. Afinal, não fico satisfeito se uma imagem não me causa impacto, se não me deixa intrigado, ou mesmo, como em alguns trabalhos, afrontado. Eu acho que já existem muitas imagens no mundo, e, se eu tiver que criar outra, então ela deveria no mínimo tentar marcar as pessoas com alguma experiência e ser intrigante.

          GBK

Para reorientar a questão: o que são imagens poderosas?

 

          TMDM

Essa é provavelmente a pergunta mais difícil e minha resposta apenas pode ser uma aproximação. Uma imagem forte é algo que, quando você a vê, sabe imediatamente que é importante, mas não tem certeza do porquê. Não acho que tenha necessariamente a ver com o tema, ou com qualquer característica formal específica. Uma imagem forte é algo que ressoa no inconsciente.

          GBK

Você vê diferença entre uma imagem “forte” e uma imagem “poderosa”?

 

          TMDM

Nunca pensei sobre essa diferenciação específica, mas chamaria de imagens fortes qualquer imagem relacionada a significados que causam alguma reação emocional, seja por temas utópicos, sexuais ou incômodos como dor etc. Se eu tivesse que categorizar as imagens fortes, diria que estão relacionadas a temas que chamam a atenção por desgosto ou por desejo e inspiração. Imagens poderosas falam com o inconsciente e podem ser gatilhos para reflexões internas, variações momentâneas de comportamento e humor, inspiração para ações futuras.

 

          GBK

Suas imagens não são ilusões. No entanto, capturam o espectador por meio de suas forças sensoriais e sensuais. Quais são seus pensamentos sobre isso? Você pode falar sobre como você produz esse tipo de efeito?

          TMDM

Acredito que isso se deva à minha determinação pessoal de não parar de trabalhar em uma imagem até que ela me impressione. A variedade de técnicas, a sensação de profundidade no uso de camadas, contraste e textura são elementos que uso muito. Eu uso pinceladas que variam de mais líquidas a mais carregadas e empastadas, uso uma espátula e uma variedade de pincéis redondos e chatos. Também uso fita adesiva em trabalhos para acentuar a divisão entre planos de diferentes texturas. Acredito que essa variação de técnicas de estratificação e o drama de muitas composições levam a esse sentimento.

 

          GBK

Uma vez, falando sobre sua carreira, você resumiu os diferentes períodos. 2011-2016: Teatro nagô-cartesiano, sincretismo, a procura do lugar da alma no corpo nas matrizes cartesianas (europeias) e nas tradições afro-indígenas; narrativas arquetípicas ressoando em diferentes signos. 2019: Necrobrasiliana, reinterpretação e manipulação de imagens da iconografia histórica brasileira sob o signo da necropolítica instaurada com o advento do neofascismo no Brasil. Parece haver um buraco de 2016 até 2019. O que aconteceu nesses anos?

 

          TMDM

Esse hiato de séries ocorreu porque meu trabalho se tornou mais fluido e baseado em obras únicas que por sua vez tratam de temas que são continuamente revisitados. A série Necrobrasiliana, por exemplo, surge como um projeto para lidar com a tragédia brasileira da ascensão do facismo ao poder e a reflexão catártica de ciclos de violência institucionalizada que sempre fizeram parte da história brasileira. Mas eu vejo isso como uma proposta específica, onde atuo entre linhas demarcadas, e isso é diferente da minha produção de obras únicas. Tudo o que produzo nos intervalos entre as séries considero o mais característico do meu trabalho, justamente porque tratam de tudo o que povoa o meu universo. São obras únicas e mais livres que dialogam com todo o resto. Grande parte da produção desse período trata de questões de todas as séries anteriores, além de experiências formais de pintura em relação à escultura e ao vídeo. Os temas tratam de lutas de resistência típicas do sul global, espiritualidade sincrética, desindustrialização, colonialismo, revisitando mitos que dialogam com a condição humana e questões contemporâneas.

 

          GBK

Em seus últimos trabalhos, pode-se ver mais liberdade artística. Você parece estar “forçando” menos o conteúdo e, em vez disso, inventa e experimenta a linguagem das pinturas ou a “écriture” da forma e das figuras. Você pode comentar sobre isso?

 

          TMDM

Sim. Eu percebi isso ao analisar meu processo. Acho que mencionei que me interesso mais pelas imagens mentais que aparecem quando procuro conexões entre signos, além de ter medo de ficar rígido na estrutura narrativa das composições, o que pode me fazer deixar de reconhecer essas imagens e composições que aparecem quase prontas na mente durante esse processo. Com o passar dos anos, entendi que essas imagens, relacionadas a outras ou sozinhas em certas composições, fazem sentido ao longo do tempo. Aceitar isso e estar aberto é o mais importante no processo criativo e o deixa ainda mais orgânico e fluido, permitindo-me explorar com maior liberdade os aspectos formais e compositivas.

 

          GBK

Essas imagens mentais influenciam a sua maneira de pintar, o “dar forma”. Se sim, de que maneira?

 

          TMDM

É difícil dizer. Eu nunca pensei sobre isso. Na maioria das vezes, as imagens surgem em determinados contextos e conceitos e por meio de conexões entre signos. A imagem às vezes surge pronta, mas isso é raro. Na maioria das vezes, as relações dos elementos ocorrem em intervalos e eu os recombino na composição geral. Penso principalmente na imagem-signo. A maneira como vou pintar se dá na ação da pintura e na reflexão que ocorre simultaneamente com o ato.

 

          GBK

Em algumas de suas pinturas recentes, as formas e as figuras parecem mais soltas, mais expressionistas, perdendo até a corporalidade. É bonito, mas você não está preocupado com a possibilidade de perda da força da narrativa? Ou isso apenas muda a natureza da narrativa? Existe um equilíbrio a ser respeitado? Ou o desafio é quebrá-lo?

 

          TMDM

Este é um processo natural. Estou em um estágio em que me permito mais liberdade de representação e isso inclui a relação entre a pintura, o tridimensional e a imagem em movimento. Se a narrativa perde força, isso eu não consigo ver. O fato de estar no trabalho às vezes me impede de fazer esse tipo de análise. Já falei sobre minha necessidade de restringir meus impulsos racionalistas, de não me amarrar a conexões entre signos ou narrativas muito fechadas. O desafio é expandir o universo representado por certos marcadores semânticos, ou seja, permitir um espaço de transcendência, e acredito que isso esteja diretamente relacionado ao que estou fazendo agora.

 

          GBK

Você pode me dizer qual é o seu “desafio artístico” atual? Que tipo de questões pictóricas você está se perguntando e que tipo de soluções artísticas e pictóricas você tem em mente?

 

          TMDM

Quero continuar ampliando as possibilidades formais de pintura e o diálogo com outras mídias, como venho fazendo. Estou interessado na relação entre o plano, o tridimensional e o movimento; a relação com a temporalidade, que é característica do vídeo, ou das camadas estáticas da pintura, e a expansão no espaço; elementos narrativos organizados em camadas e dimensões.

 

          GBK

Você vê e sente um certo tipo de “progressão” ao lidar com suas questões pictóricas?

 

          TMDM

Com o tempo, as soluções se tornam mais fluidas, os repertórios se tornam maiores e as possibilidades surgem mais naturalmente no processo criativo. No final, a minha produção, ou seja, a materialização das minhas ideias, é muito baseada nos recursos que disponho. Se meus recursos são limitados, eu me adapto e tento aproveitar o que tenho.

 

          GBK

Você se considera pertencente a um grupo de artistas internacionais?

          TMDM

Os anos que passei produzindo em certas partes do mundo me deram uma compreensão mais universal da minha produção e de como eu penso. Tenho vários amigos artistas ao redor do mundo de culturas bem diferentes, com abordagens diferentes de seus trabalhos, com quem converso de vez em quando, mas sempre tenho a sensação de que somos todos bastante semelhantes. Apesar de muitas vezes lidar diretamente com questões do sul global, meu trabalho é compreensível no resto do mundo.

          GBK

Você pode citar alguns artistas internacionais de quem você se sente artisticamente próximo?

 

          TMDM

Matthew Barney, pela criação de um mundo único a partir do corpo e suas referências universais e barrocas; Anselm Kieffer, pelas referências literárias, históricas e pela materialidade e escala épicas; Jorg Immendorff, por sua força de pintura, expressão, crítica, ironia e política; Martin Kippenberger, pelo trabalho provocativo, experimental, libertador, cínico e irônico. Paul McCarthy, pelo caráter provocador, escatológico e político de seu trabalho, a viagem libertadora entre diversas mídias; Raymond Pettibon, pelo caráter literário de sua obra, a variedade de temas, a lógica dos fanzines, a apropriação de iconografias e a ponte entre o underground e o mainstream por meio do desenho.

 

          GBK

Você se preocupa com a noção de originalidade? O que você acha da noção de originalidade como artista?

 

          TMDM

Acho que todo artista tem a ilusão de originalidade. Eu tenho, é o que me faz continuar, mas acho que a originalidade está mais relacionada com a construção – é um caminho pessoal que não é seguido por mais ninguém. Vivemos um momento da história da arte em que todos os limites formais possíveis foram ultrapassados e o que resta é a construção de um caminho que é só seu. No meu caso, sempre me interessei em usar a pintura como meio narrativo, e esse interesse vem da minha apreciação pelos grandes mestres do passado, mas também influenciado pela cultura visual contemporânea de histórias em quadrinhos, jogos, propagandas, cinema etc. É nesta questão que procuro construir um caminho o mais alinhado possível com a minha forma de pensar – ou seja, criar o meu próprio método com o qual possa construir o meu mundo. A arte contemporânea permite que eu me dedique a isso sem me guiar pela preocupação de me comunicar com um público específico, o que para mim é perigoso porque existe sempre o risco de cair num discurso hermético. Mas essa característica é, ao mesmo tempo, libertadora. Acredito que artistas e criadores em geral que têm interesse em abrir e construir caminhos únicos, muitas vezes pensam em seu trabalho no contexto de um tempo que ainda está por vir e de um público futuro que será capaz de absorver sua produção de forma mais profunda.

A DESTRUIÇÃO DA ARAPUCA, O JOGO DOS CAÇADORES CANIBAIS E OUTRAS NOTAS

Josué Mattos, 2016

A destruição da Arapuca. O uso de vocabulários pictóricos inventariados na história da pintura monumental e um interesse manifesto pelo processo que ativou sua espacialização orientam a maneira com que Thiago Martins de Melo elabora seu corpo de obras. Intercaladas por imagens-movimento que devem à pintura sua existência, elas funcionam, em muitos casos, como uma espécie de colagem animada sobre a tela, completadas por linhas espessas de tinta que invadem écrans de televisores. Essas linhas alteram a superfície e a natureza do material exibido, de modo que suas esculturas e objetos sejam percebidos como elementos fugidios do quadro, e seu trabalho seja desnudado de qualquer purismo linguístico. Ao tomar partido do autorretrato como elemento da encarnação, o artista não só impõe para si a figura do fantasma como também opera em via de mão dupla, assumindo a imagem de agressor e agredido, herói e anti-herói. Incita uma trágica catarse no ambiente familiar, com a qual inicia seu percurso, que se deslocaria, anos mais tarde, para o que ele chamou de “catarse étnico-social”. 

 

Atento aos movimentos externos à pintura, permuta instantes fecundos e insolências produzidas com fragmentos de corpos e uma selvageria latente. Cães bradam, uivam. Genitálias usurpam insistentemente o teto da casa-feito-arapuca, abrindo pontos de fuga para os confins do privado. São lanças fálicas. Apontadas para cima, indicam o meio das pernas como o lugar onde residem os grandes mistérios da vida, em estreito diálogo com Pietro Aretino. Trata-se de um álbum de família cujas associações intransitivas são produzidas pelo encontro de imagens arquetípicas. Junto ao casal, ossadas e vanitas aparecem imbricadas em narrativas de gozo e trauma. Herança de Iroco ou a cama de Ulisses (2010) [p. 233] reúne representações de fertilidade, progênie e um casal como alegoria da força libidinal, que ataca fantasmas prestes a eliminar, pela raiz, a árvore que sustenta seu filho, figurado no topo. Iroco é a entidade que a personifica. A herança ameaçada é o filho, aquele que guarda o rastro. A dupla replicada no registro inferior por dois fantasmas aparece com motosserras imponentes que retornam à produção do artista como presenças da devastação. A árvore de Iroco é a responsável pelo acesso de todos os orixás ao mundo terrestre. Ao conectar mundos, intercede sobre o tempo e a ancestralidade. Por isso, na tradição do candomblé Ketu, é o protetor das árvores sagradas. Daí aproximá-lo do evento narrado na Odisseia, quando Ulisses, após o massacre dos pretendentes, volta à casa e precisa provar sua identidade em uma afronta que Penélope forja. Ela solicita que a cama dele seja instalada no jardim, onde Ulisses descansaria até que sua identidade pudesse ser comprovada. Mas a cama, construída pelo herói sobre e a partir de uma sagrada oliveira ainda enraizada, com metais preciosos e peles, só poderia ser removida de seu lugar de origem com a ajuda de um deus, e é o que Ulisses afirma. Ao lado direito da cama perfurada pela árvore de Iroco, uma pintura dentro da pintura apresenta o casal Radha Krishna: eles são Kamadeva, palavra sânscrita que compreende kama em seu duplo sentido – luxúria e amor imaculado –, fusionados e originários no casal divino, deva. No recinto, há movimento em cada cena: o limite do céu é superado pela árvore de Iroco, que protege a criança; o teto é quebrado com lanças fálicas; um móvel irremovível serve para atestar a singularidade do herói; e a presença de Kamadeva evoca jouissance em seu jhulana (balanço). Restaria associar a esses encontros o contato inexpugnável que a pintura dá a ver com o caos, com a loucura ou com a iminência da destruição trágica, que se pronunciam ativamente feito declarações de Zaratustra, em “Do ler e escrever”. Como se o casal estivesse atento aos que escrevem com o próprio sangue; desconfiasse de medíocres que só leem por passatempo – já que pessoas razoáveis raramente são vistas ou se deixam ver pelas coisas, como bem notou Manoel de Barros. Como se dissesse que a vida é amada não porque estamos acostumados a ela, mas pelo amor que a estrutura. Ou que a loucura que a habita reside, em partes e ocasionalmente, na razão. Com isso, condicionaria sua crença a um deus que soubesse dançar e perceberia seu demônio como o espírito que vagueia seus pesadelos, com solenidade e temperamento grave e profundo.

 

Casa útero (2011) [p. 234] ou A Íris fodida (2010) [p. 235] carregam a autorrepresentação e o retrato familiar de uma estranheza tal que tampouco deixam de confundir loucura, amor, experiência especular e travestissement. Na última, a mulher figurada no registro superior faz menção à deusa que dá título à obra. Aparece ao lado de um casal em máscara de cão, que rompe o teto da casa com suas lanças. Ação inaugural em O teto (2010) [p. 226], em que o ato de romper a parte superior da casa dá nome à pintura, é dela que surge um vocabulário próprio a este fecundo período. Com um corte frontal da arquitetura, o gesto parece aludir à ruptura da “quarta parede”, de Diderot, integrando o ato ao espaço onde é mostrado, de modo a trazer o sujeito para dentro da pintura e vice-versa. Com corpos deitados ao chão, cobertos de deuses como Durga em sua luta contra Mahisha, apoiados em uma iconografia de vanitas e uma bravura animalesca particular, cada pintura guarda o trecho de um enredo que se desdobra em tentativas de usurpar a ambiguidade da casa, vista de forma imprecisa, sendo ao mesmo tempo arapuca e lugar de repouso.

 

Em A Íris fodida, a deusa porta a indumentária da Virgem. Sobre seu ventre, a boca enorme de um cão feroz está pronta para o bote. É o ciclo do cão em seu paroxismo. Vista de baixo para cima, a partir do eixo central da pintura, um autorretrato deitado em ereção, estimulada por uma mão que surge do extraquadro, parece reanimar o corpo morto-vivo. Isso porque, a seu lado direito, um cadáver equivale ao retrato do artista, que completa a cena com um casal de cães, à sua esquerda, trepando descaradamente. 

 

Percebida sob outra perspectiva, a mão alheia no primeiro plano da pintura assemelha-se àquela que introduz o sujeito às narrativas de Nicolas Poussin. Aproximação que supõe, também, uma espécie de reconfiguração da cena construída em torno da cerimônia realizada para Príapo, deus da fertilidade, que o artista pintou em grande formato, entre 1634 e 1638. Nessa hipótese, a mitologia reformada pela A Íris fodida indicaria que o autorretrato deitado é a encarnação do deus Príapo, o então responsável por corromper a virgindade da mensageira dos deuses. A mão externa ao quadro seria de Himeneu, deus do casamento, que aparece travestido na pintura de Poussin. Mão essa que gerou dúvidas na ocasião em que restauradores perceberam, em 2009, camadas suplementares de pintura a seu lado, as quais cobriam o falo ereto de Príapo. Intitulada Himeneu travestido durante um sacrifício a Príapo, a obra pertence ao Museu de Arte de São Paulo (MASP). No entanto, o ato de pudor que escondeu a cena iconográfica central da obra foi realizado antes de a obra chegar ao Brasil, quando pertencia à família real espanhola, uma provável imposição de católicos integristas, desestruturando o momento em que o jovem Himeneu, travestido, realiza um sacrifício à fertilidade. Adotada essa remota suposição, em A Íris fodida o corpo do deus travestido aproxima-se da identidade da Rébis Mestiça, hermafrodita que reúne em si a potência masculina e feminina. Seria ele/ela que levaria Príapo à virgem Íris. Vale lembrar, por fim, que o nome Himeneu deriva de hímen, a membrana vaginal que preserva a mulher na condição de intocada, principal característica da filha de Electra.

 

No entanto, a trama narrativa não parece coadunar exclusivamente com essa passividade explícita. A presença do cão feroz situado ao centro do ventre de Íris brada em loucura descomunal, em contraposição ao plácido retrato da deusa. Juntamente ao casal que porta máscaras de cachorro ao seu lado, reafirmam um desejo de confronto com a própria animalidade. Sobre a animalidade do sujeito, Clarice Lispector afirmou “Não humanizo o bicho porque é ofensa – há de respeitar-lhe a natureza – eu é que me animalizo”, e Veronica Stigger, curadora de O útero do mundo, rebateu, lembrando-nos de que “confrontar o bicho, em Clarice, é como estar diante de um espelho que não apenas revela aquilo que se quer esconder, a animalidade, mas obriga a assumir o que, até então, se receava encarar. É por meio do grito – um som anterior à fala e a qualquer outra forma de linguagem articulada – que o humano se aproxima do animal, arriscando-se à desumanização”. Talvez o autorretrato deitado de Casa útero, recoberto por uma pele de animal selvagem, e o grito do cachorro sobre o ventre de Íris sejam as imagens que melhor assumem essa condição limiar. Já a expressão do autorretrato com uma maquete de casa em chamas é semelhante à da A Íris fodida: ambos estão envoltos em uma introspecção expressa pela experiência especular desestabilizadora, ao mesmo tempo que dirigem, indiretamente, seus olhares ao outro que os olha. Esse movimento duplo e a implosão dos bons modos introduzem a estranheza espectral que circunda cada espaço do quadro. É uma pintura-espelho, sem nunca ter sido janela. Retorna para si aquilo de que dá à visão. Por isso a catarse inclui, sobretudo, o outro, sendo Casa útero um dos momentos mais fecundos, nesse sentido. Cada qual à sua maneira, essas primeiras pinturas constroem um “paradigma da medialidade”, conforme se situam como objetos do sensível, intercambiando relações com corpos indefinidos, migrantes. São deuses, homens, mulheres e animais. Todos projetados pela pintura-espelho que mostra a imagem do “ser da estranheza”, ao mesmo tempo que leva a pensar sobre a condição daquilo que se faz mutante nas pinturas. Tomado de assalto, o sujeito que expressa repulsa diante da cena é comumente quem promove a adesão às imagens. Por isso, cada narrativa revoga para si o direito de produzir “fratura entre a forma de algo e o lugar de sua existência”. O devir-imagem que cada instante com essas pinturas proporciona, sendo uma testemunha instigante do não visto, surge desse espaço feito casa-arapuca – onde o sujeito é capturado no lodaçal e na impraticabilidade do desejo, em meio a labaredas que destroem casas, elas próprias invadidas por animalidades e fantasmas que afligem o banal.

 

Jogo dos caçadores canibais À diferença de mitologias individuais que orbitam exclusivamente em torno de processos intimistas, a trama narrativa que marca a produção inicial do artista demarcava uma encruzilhada, da qual era importante se desvencilhar. Incinerar a casa-útero ou romper-lhe o teto com uma figuração da libido responde a esse fim, no mesmo momento que produz um embate ainda mais complexo, a saber, o estado de exclusão do Maranhão e os artifícios de poder que mantêm essa região inscrita em uma realidade muito próxima à do século xvi. Renovada epistemologicamente, a nova encruzilhada aproxima a América Latina da África, tensiona as práticas discursivas hegemônicas e, sobretudo, produz uma ideia particular de cena teatral, cuja ambição parece aliar-se ao Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa, na medida em que funciona como um espaço de incorporação de entidades, sem pano de fundo, cortina ou área de distinção cênica. Afiado e complexo, o lugar impreciso da cena e o discurso que a renova instauram a fusão de mundos, inaugurando o Teatro nagô cartesiano: um universo composto de cenas criadas por “fábulas da distopia” e uma esperança depositada na magnanimidade da Rébis Mestiça. Com uma gama cromática que promove dramaticidade e gestos abruptos, essa produção incide signos sobre signos, demarcando ainda mais seu vocabulário visual. A teatralidade produzida funciona à revelia do plano. Confunde práticas alquímicas, ritos sincréticos e uma ancestralidade geradora da mestiçagem do continente. O que coincide com a tentativa de evocar a difícil cicatrização das feridas ocasionadas pelo derramamento de sangue em genocídios de índios, quilombolas e comunidades ribeirinhas, reflexo de relações escravocratas ainda vigentes. O espaço atribuído ao cartesianismo nessa teatralidade não apela a qualquer leitura derrisória. É, antes, um comentário às especulações que Descartes produziu quando identificou, na glândula pineal, o lugar da consciência e assentamento da alma. Contudo, aproximar universos antagônicos consiste em redimensionar, em sua produção, o espaço da mesa de dissecação. É a remontagem de uma cena para a negociação de corpos anônimos, surrados e exaltados, ou para ver a historiografia que os define ser posta em jogo. Com isso, as ressonâncias que emergem da barbárie, a obscuridade decorrente da recomposição de narrativas denegadas e a consequente adesão à tradição do encontro fortuito formam o conjunto de peças remontadas sob a égide de um teatro singular, cujo nascimento a fórceps parece se preocupar com o confronto de ideias animistas com o dualismo cartesiano. Responsáveis pela carnalidade de sua pintura e assentamentos de silhuetas sobre campos pictóricos minados, esses encontros permitem trânsito livre por uma cosmogonia ambivalente, que compactua com a perspectiva de que “toda civilização que repudia seu potencial bárbaro já capitulou diante do barbarismo”. Sem indicar o quanto a figura da mulher violentada, o bastardo, o mestiço e o indigente funcionam como a pele de sua linguagem, ou seja, aquilo que há de mais profundo, segundo a fórmula de Paul Valéry, é válido, contudo, apontar o modo como o usucapião, feito em nome de comunidades usurpadas, instaura uma cosmopolítica singular nesta cena. Ele gera atos potentes de resistência, vincula vozes e integra temporalidades que não concernem apenas ao passado colonial do continente latino-americano. Antes, confundem registros e narrativas, históricas e mitológicas, com o interesse de aproximá-los da adversidade e do escárnio que corroem o tempo presente. Reverberam o lema de povos indígenas: viver bem, não melhor. Tudo sem deixar de criticar duramente as instrumentalizações que o enunciado recebeu na sociedade maniqueísta, na qual o credo e o imaginário de povos sitiados é sucateado.

 

Nesse contexto, A cruz e o trono neocoronelista (2013) [pp. 86-87] funciona como a figuração da vergonha entronada, uma história compactuada com a indústria de transgênicos, que reatualiza questões ligadas à imposição do subdesenvolvimento em nosso continente. Sem rosto reconhecível, sua cabeça de porco não faz jus ao animal, cujos hábitos, estranhos para a sociedade que aprendeu a jogar a sujeira para baixo do tapete, servem comumente para ilustrar o ilustrável. Falta uma cabeça ao ente em questão. Apesar de Eduardo Galeano ter se reportado ao Códice Florentino, no qual o texto náuatle apresenta os conquistadores como “uns porcos famintos, que anseiam pelo ouro”, e Bola-de-Neve e Napoleão, em uma tradução para o português de A revolução dos bichos (1945), de George Orwell, terem encabeçado o “triunfo dos porcos”, depois de acederem à linguagem e se tornarem animais distintos no reino que cultuava o Animismo, pregando que todos são iguais entre si, a figura entronada entre escorpiões da udr (União Democrática Ruralista) e da cna (Confederação Nacional de Agricultura) é, ainda assim, honorada, ao receber uma cabeça de porco, por prescindir de qualquer figuração. Sendo o fantasma que capitaneia a festa, ela manda um gesto obsceno a quem a fita: “fodam-se, vivemos a era da corrupção legalizada”. No entanto, essa figuração reinventa a sátira do “porco triunfante” em terras de tupinambás, o que explica a cortina de retratos ao fundo. Em mais de uma ocasião, o artista quer dar nome aos porcos e porcas. E, ainda que seu rosto seja múltiplo, sua metodologia parece replicar-se ao longo da história. Por isso, em um comentário sobre os ultrarricos envolvidos no vazamento dos Panama Papers, Žižek invocava o modo como Karl Marx se dirigiu, em 1843, ao Ancien Régime alemão, aproximando-o de uma retórica persistente, replicada aqui ao neocoronel entronado: “imagina que acredita em si mesmo e pede que o mundo imagine o mesmo”. A diferença, aqui, é de escala: o mundo está relacionado a pequenas comunidades voluntariamente desinformadas pelas forças do poder opressor. Žižek completa: “em tal situação, apontar a vergonha dos poderosos torna-se uma arma. […] Esta é, hoje, nossa situação: defrontamo-nos com o cinismo desavergonhado da ordem global, cujos agentes apenas imaginam que acreditam em suas ideias de democracia, direitos humanos etc.; mas, por meio de vazamentos como os do WikiLeaks ou dos Panama Papers, a vergonha – nossa vergonha por tolerar tal poder sobre nós – torna-se mais intensa ao vir a público”.

 

Além de dar a ver um cenário de devastação em que pilhas de troncos de árvores completam o horizonte à direita, A cruz e o trono neocoronelista funciona como uma pintura-arma em forma de cruz grega, cujo horizonte, construído com linhas espessas de um vermelho sangue, evoca “as veias abertas da América Latina” – devedora, subserviente, desabonada em seus “jardins transformados em desertos”, convivendo com espectros responsáveis pelo cultivo de alimentos transgênicos, que não cessam de sucateá-la. Rendido a manchas que constroem uma cortina de fumaça, o horizonte de Árvore de sangue – fogo que consome porcos (2013) [p. 137] deixa de se valer das linhas-veia de A cruz e o trono neocoronelista. Em Árvore de sangue  – fogo que consome porcos, contudo, as linhas-veia demarcam a silhueta do porco, registrado sobre outra cortina, formada por retratos cuja popularidade e aceitação dividem o Brasil desde sua origem. O projeto de incineração é assistido, no mesmo quadro, por outro grupo de retratados, na copa de uma longa árvore que tem, em sua raiz, o brasão de armas da República Federativa do Brasil. Ainda que apressada, há uma tentativa de aproximar a formação circular e a distribuição das estrelas do brasão em seu interior, ou seja, a disposição dos retratos na copa da árvore remete a esse signo da República manchado de sangue. Há um nível de correlação com o princípio de sabotagem da pintura de história, encontrado nas obras de Nicolas-Antoine Taunay por Lilia Moritz Schwarcz, para quem o artista fazia, do gênero em questão, “uma valsa a ser dançada com a natureza majestosa do Brasil”. Com a diferença de que, neste caso, a sabotagem funciona ao tentar construir uma dança ritualística com a escrava Anastácia como figura central, porta-voz da história escrita a contrapelo, na qual todos somos bárbaros. Nessa cena concatenada pelo artista, uma árvore-sangue reúne figuras cujas presenças reavaliam o estatuto de heróis. Fazendo valer o projeto de tingimento da “brancura”, fornecem os principais elementos para a conclusão da sabotagem. Seus olhares fixos no outro a sua frente incitam a reavaliação da história sob a ótica do ato de resistência que cada pequeno espaço da pintura manifesta, incansavelmente. 

 

Outra presença recorrente na produção do artista é o uso de cruzes. A cruz que forma o quadro do neocoronel entronado reforça esse elo no próprio formato da obra, recebendo, na linha horizontal inferior, cruzes alinhadas com ferramentas de trabalho agrícola, em um espaço delimitado por arames farpados, elemento recorrente nas pinturas do período em que o Brasil via nascer uma resistência ultrajante de reforma agrária e demarcação de terras indígenas. Em curso, esse problema histórico também se aproxima bastante da “cruz nos cabos das espadas”, como dizia Eduardo Galeano, em alusão à chacina que o cristianismo produziu como um projeto de aculturação, ancorado na irresponsável e sempre crescente febre catequética, de cunho missionário salvacionista. Por isso, em outras obras, a cruz é a ferramenta da sodomia de escravos e coronéis, sustentando um sistema desenvolvimentista destituído de memória, afagos e valores espirituais. A propósito, é por meio dela que a ideia do povo sem alma é disseminada. Ao aparecer no topo da capela do coronel, A sodomia da brancura na capelinha do coronel (2011) [p. 225] mostra um autorretrato que se replica em ações distintas. Representando a si mesmo como a figura branca com uma lata de tinta preta, ele a despeja sobre o coronel e se tinge ao mesmo tempo. Aparecendo em três registros, o autorretrato é devedor do modo composicional com que O pagamento do tributo, de Masaccio, construía sua narrativa. No caso do tingimento da brancura, o coronel responsável pela pobreza de uma das regiões mais ricas do Brasil é sodomizado e recebe latas de tinta. A pele é vista como a profunda superfície da América Latina. Tingi-la implica pensar o sincretismo mestiço, reestruturando, por meio dele, as regras em vigor. É nesse campo minado que o artista prevê o evento em que o matriarcado de Pindorama sucumbe, crucificado ao som de motosserras extrativistas. Há danças da destruição em cena, coreografada por estatais que lustram as botas dos neocoronéis do ferro sujo. Assim, em Feridas do ferro sujo (2012) [pp.108-09], o país aparece inteiramente manchado de sangue, tomado pelo mesmo vermelho que desenhou, anteriormente, um horizonte em linhas nervosas. Por sinal, o trajeto das mineradoras que compactuam e fortalecem as lutas pelo domínio de territórios indígenas tinge de vermelho o oceano. Arame farpado e mulheres indígenas impotentes aparecem ao lado de um país coberto de sangue e vanitas, a serviço de montadoras cujos logos (Ford, Nissan, bmw, gm) justificam guerras fratricidas ainda mantidas às escuras. Uma República fantasmática transforma seu território multiétnico em um lugar massificado pela elite que impede a demarcação de terras indígenas e constrói seus exércitos em comum acordo com o poder armado do Estado. Junto a essas obras, O matriarcado de Pindorama sucumbe à dança estatal das motosserras do andrógino fálico presidencial (2012) [pp. 200-01] adultera narrativas oficiais, celebrando a fusão do bárbaro com o civilizado. Em atos de pura violência e irrestrito pudor, o porco engravatado encarna a escória da sociedade fortalecida no poder do cifrão que, aliás, vem figurado no broche, preso na gravata do cara de porco e nos óculos escuros do sujeito que porta a motosserra e destrói terras alheias, salvaguardado pela efígie da República Federativa do Brasil, a qual, dizem os espíritos de boa vontade, teria sido retirada de La Liberté guidant le Peuple [A Liberdade guiando o povo] (1830), de Eugène Delacroix.

 

 

outras notas Com A liberdade guiando o povo em cenário de tamanho contrassenso, é urgente encontrar saída para o “complexo de encruzilhada” que consome nossos cérebros vivos neste jogo dos caçadores canibais. Sendo bastardos, disseram-nos que guiariam nossos hábitos e que andaríamos juntos. Aprendemos, há pouco, a resistir. Mas já fizemos escola nesse quesito. Há resis­tência na jovem América Latina. Ela é pulsante e licenciosa. A coroação da Rébis mestiça (2013) [p. 67] por índios em uma densa mata virgem atravessa as forças midiáticas dominantes e parece encarnar sua melhor alegoria. Ela nasce na margem. Come quieta, de fora para dentro. Não alcança as massas, atua na singularidade. Combate o analfabetismo funcional vigente. A tortura mental e a barbárie dissimulada, que chegou no navio dos conquistadores. Aquela nascida pelo excesso de ocupação, que sempre conhecemos em regimes escravocratas. Foi Nietzsche quem disse que “por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie”.

 

Embora romper a casa-útero se mostre como um projeto certeiro, a encruzilhada formada pelo estado de exclusão ainda nos faz suspeitar de que “estamos fodidos”, já que “a vida no Brasil nunca valeu muito”. Chico Mendes já sabia, o Martírio (2014) [pp. 138-41], no Brasil, nasce na encruzilhada. Ter corpo fechado é fundamental, mas não garante a vida. Sete Flechas testemunha há séculos que se a vida já não valia muito, “hoje vale ainda menos”. Encurralada em sistemas canibalescos, cabeças rolam ocas. Cérebros são servidos com vinagrete. Os capangas dos senhores alinhados sabem avaliar um bom cérebro ao observarem figuras atentas. E quem pensa tem cérebro raro, caro. Que ele, então, seja consumido, pensam os senhores alinhados, que o devoram prontamente. Atenção: “os canibais de cabeças descobrem aqueles que pensam, porque quem pensa, pensa melhor parado”. Aliás, não devo tardar. Preciso ir. Não fique aí por muito tempo. Corremos risco. Fingir estar atrasado pode ser a solução.

 

Interpelado, ouço: 

“Mão na cabeça, malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos.

Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?

Se é documento eu tenho aqui.

Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí.

Eu quero é saber o que você estava pensando.

Eu avalio o preço me baseando no nível mental

Que você anda por aí usando.

E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando”.

 

Orwell: 1984 – o futuro é retrocesso.

1984: “Podres poderes”: “Será que esta minha estúpida retórica / Terá que soar, terá que se ouvir / Por mais zil anos”

1984: “Metrô linha 743” – “quem será esse desgraçado dono dessa zorra toda?” 

 

1984 + 30: A suspeita. A violência: “Giramos em torno disso como um animal preso ao poste. […] Suspeito, no entanto, que haja um vínculo estreito entre violência e burrice urbana. Além de morar em São Paulo, andei recentemente por Salvador, São Luís, Manaus, Natal – suspeito que sejam, todas elas, cidades apodrecendo sob o sol. […] Suspeito que estamos fodidos”. 

 

1984 + 30: Martírio: O Amazonas é responsabilidade do mundo. Suspeita-se que a encruzilhada e os arames farpados sejam uma arapuca. Que seguimos sendo uns boçais. Atravessamos os sinais vermelhos. Perdemos os verdes. Por quanto tempo mais os ridículos tiranos? Martírio: Sim, a burrice e a incompetência da América católica preservam seus tiranos. A mesma burrice que mantinha a festa do outro lado do Atlântico. Martírio: “Ou então cada paisano e cada capataz / Com sua burrice fará jorrar sangue demais / Nos pantanais, nas cidades / Caatingas e nos gerais”. Martírio: “Morrer e matar de fome / De raiva e de sede / São tantas vezes / Gestos naturais”. Martírio: Paulo Fonteles esquecido por uns, desconhecido por muitos. Martírio: “anônimos que lutavam pela terra, saturam o campo da representação”. Totem é Martírio. Espingardas e pneus abrem rotas a fórceps. Cabeças rolam no chão. Ataca-se, também, o sincretismo religioso. Corta-se o direito ao contato com o desconhecido. Encerra-se a vida para além do visível. Martírio é vida nua. É o ciclo do cão em perpétua continuidade. 

 

O Martírio nos define como invasores e usurpadores por conivência. Os bárbaros somos nós, os civilizados. Exterminamos o outro e outrem. Este último é o jaguar, o rio Doce, os Awá Guajá, o Eldorado dos Carajás. É a cabeça sincrética no chão. 

 

Minha cabeça caída, solta no chão

Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez

[…]

É um conselho sério pra vocês

Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês.

2019 DUSHÁ, Germano; MATTOS, Josué; NEVES, Manuel; DOS ANJOS, Moacir;

VAZZI PEDRO, Viviane. Thiago Martins de Melo. Rio de Janeiro: Capivara Editora

Brasil, 2016

PINTURAS AMBIENTAIS: A NARRATIVA PICTÓRICA PRÉ-MODERNA NA OBRA RECENTE DE THIAGO MARTINS DE MELO

Manuel Neves, 2019

 

Este texto é resultado de uma conversa informal com Thiago Martins de Melo, em abril de 2015, durante um vernissage na galeria Mendes Wood dm, que o representava no Brasil à época. Na ocasião, o artista apresentou um de seus últimos trabalhos, fruto de suas incipientes investigações formais. A obra, de uma originalidade radical, era composta por pinturas coladas no teto, que se desdobravam no espaço; na estrutura da tela, havia monitores com animações, cuja estética se aproximava das pinturas.

 

Colocado em perspectiva, esse trabalho é uma continuidade coerente da exploração que o artista fez de obras que se expandem no espaço, como Martírio [pp. 138-41], apresentada na 31ª. Bienal de São Paulo. Ele poderia ser caracterizado como uma ambientação cenográfica, na qual se integram pinturas monumentais e objetos escultóricos, entre clássicos e totêmicos, em referência aos totens pole dos indígenas canadenses. Nessa conversa, o artista manifestou interesse em construir obras com as quais o espectador se envolvesse fisicamente, para que sua experiência fosse não apenas contemplativa mas também comprometedora de todos os sentidos. Assim, os elementos visuais e espaciais teriam que incluir em sua estrutura estético-formal o tempo, ou seja, imagens em movimento. A incipiente utilização de animações, portanto, reforça tanto o caráter fortemente narrativo de sua obra quanto a necessidade de projetar uma temporalidade que sublinhe seu caráter único.

 

Este texto não irá abordar em específico a prática do vídeo no trabalho de Thiago, pois não considero ser possível falar de vídeo ou fotografia como arte dentro do espaço contemporâneo, sendo desnecessária qualquer categorização; isso é possível somente quando se colocam esses elementos técnico-formais em uma perspectiva histórica, no sentido de que as práticas contemporâneas de produção de imagens ou de imagens em movimento têm caráter híbrido. O que interessa é analisar como essa produção ou ressignificação de imagens, estáticas ou temporais, ocupa uma determinada função estético-discursiva. No caso de Thiago, como dissemos, essa função se relaciona com a necessidade de apresentar um tipo de narrativa que se desdobre no espaço e no tempo. 

 

Por essa razão, para descrever esses mecanismos de produção de imagens, gostaria de utilizar como referência dois tipos de prática pictórica pré-moderna que tiveram seu auge e sua decadência e se desenvolveram em universos culturais paralelos durante o século xix, na França. A primeira é a pintura de panoramas, que não foi uma prática artística, mas uma atividade relacionada à indústria do entretenimento; a segunda, a pintura histórica, que, como categoria de arte, tem seu fim com a chegada da modernidade encarnada na figura de Édouard Manet. 

 

Três elementos extremamente significativos na obra de Thiago tornam possível que esse exercício anacrônico, sem dúvida pós-moderno, se justifique; primeiro, a presença da representação da paisagem; segundo, a pintura como instrumento para a construção de imagens narrativas de caráter histórico; e, por último, a busca por refletir a realidade política e social na qual vive. 

 

Apresentarei brevemente outro exemplo histórico que, embora mais próximo no tempo, em seus elementos culturais e em suas escolhas estético-formais, projeta-se como um oposto ideológico – refiro-me ao muralismo mexicano. Esse importante movimento se desenvolveu dentro da primeira modernidade latino-americana, no México, e expandiu sua influência por todo o continente. Nele, podemos identificar estratégias semelhantes às de Thiago, como o caráter monumental, o aspecto narrativo e a necessidade de se conectar com uma realidade específica. Mas, na articulação dessas estratégias, os mexicanos não queriam apenas fazer parte dos convulsionados processos históricos e políticos de seu país como também construir imagens que projetassem uma identidade mexicana. Desse modo, o caráter monumental e estético, ainda que em alguns casos expressionista ou intencionalmente realista, apontava à geração de imagens de viés pedagógico; ou, dito de outra maneira, as pinturas desses artistas se projetavam como um grande constructo estético-cognitivo que buscava alfabetizar, pela imagem, uma população com alta porcentagem de analfabetismo. Além de mostrar uma visão idealizada da história e da política, essas imagens se apresentavam também como uma autoridade moral, definindo o que era verdade, justiça e liberdade. 

 

Nesse sentido, a obra de Thiago, embora tenha em comum o aspecto realista e expressionista no nível estético, e embora aspire a uma escala monumental, não se projeta, nem persegue – como seus colegas Diego Rivera, José Clemente Orozco e David Alfaro Siqueiros – uma ambição moralizante, evitando qualquer tipo de discurso maniqueísta sobre a realidade histórica, social, política ou econômica em que está inserida. É fundamental, para entender a obra de Thiago, reconhecer como essa dimensão moral se transforma em uma posição ética do fazer artístico. 

CENÁRIOS PARA UMA HISTÓRIA PINTADA Os panoramas (do grego pan, tudo, e horama, espetáculo) foram artefatos nos quais as técnicas pictóricas aprimoradas no neoclássico – em particular a perspectiva e o trompe-l’oeil – são utilizadas para construir uma representação pictórica monumental de uma paisagem ou evento específico, como uma batalha. Essas pinturas eram montadas em um espaço circular ou em um semicírculo de grandes dimensões.

 

Embora tenham sido originalmente inventados por um artista inglês no fim do século xviii, foi em Paris que os panoramas tiveram um desenvolvimento sem comparação. Os mais conhecidos se encontravam nas passages couverts ou galeries commerciales, os precursores dos centros comerciais. Esses espaços cobertos para a circulação de pedestres cresceram no contexto das grandes reformas urbanas de Paris na segunda metade do século xix, cujo elemento marcante fora a construção de grandes bulevares, até hoje emblemáticos da estrutura urbana da cidade, declarada por Walter Benjamin como a cidade mais moderna do Ocidente no século xix.

 

O espaço urbano, tendo a burguesia como principal ator, adapta-se aos poucos ao incipiente desenvolvimento da vida moderna – como o demonstra a pintura impressionista –, e múltiplas atividades passam a ocupar o tempo livre, consequência das mudanças sociais produzidas pela Revolução Industrial. No novo contexto socioeconômico, surgem duas indústrias fundamentais para o imaginário capitalista, as quais desde suas origens estiveram estreitamente conectadas: a do consumo e a do entretenimento.

 

O público entrava nesses recintos circulares e se colocava numa varanda ou mirante, no centro, de maneira que o espaço monumental da pintura contornasse inteiramente o lugar, ocupando todo o horizonte visual. A representação extremamente realista de uma paisagem causava no espectador a percepção envolvente de se estar cercado pela natureza em todo o seu esplendor, fazendo com que o público se sentisse em um outro lugar e realizasse uma viagem imaginária sem se deslocar fisicamente, ou seja, produzia a mesma experiência ficcional do cinema no século xx.

 

É preciso recordar que, nesse ambiente cultural, a pintura, entendida como um conjunto de saberes técnicos, tradições e projetos estéticos, era concebida como o exemplo mais cabal das belas-artes. A utilização da pintura como um fim não artístico se deu no mesmo contexto do auge e decadência da pintura histórica. Entre os séculos xvii e xix, este foi o gênero mais elevado nas práticas pictóricas. Somente por meio dele se podia alcançar o estatuto de artista para além do de artesão. O gênero atravessou vários estilos, mas foi no neoclassicismo que alcançou seu máximo esplendor e desenvolvimento. No contexto francês, a hegemonia da academia e os processos políticos da Revolução impulsionaram o estilo contra o barroco, representante cultural do Antigo Regime. Os últimos expoentes dessa prática foram Jacques-Louis David e Eugène Delacroix; o primeiro é um dos maiores representantes do neoclássico e o segundo, talvez o último grande pintor não moderno, é um dos principais expoentes do romantismo pictórico.

 

David é um caso emblemático. Além de ter sido um dos pintores mais importantes de sua época, foi fundador de uma escola e político comprometido com os processos da Revolução. A obra do artista, baseada em uma revisão dos valores estéticos clássicos da Antiguidade e do Renascimento, baseava-se em recriações narrativas de cenas exemplares da vida grega ou romana, com um conteúdo político, moral e ético, projetando-se como críticas agudas tanto à monarquia como às peripécias da Revolução.

 

O compromisso de um artista com a política concreta, como a articulação de um discurso estético narrativo que tornasse viável a produção de uma imagem crítica da mesma, enfraquece-se com a chegada da modernidade. O interesse pela representação dessa dimensão política e social é paulatinamente abandonado para dar lugar a outra dimensão própria da cultura e da arte, além de a ideia de narração em si ter sido deixada de lado. Assim que se inicia o século xix, a arte se torna autônoma e autodefinida, renunciando a qualquer elemento exterior e tendo como tema e reflexão principal ela mesma.

 

 

REALIDADES NARRADAS, PAISAGENS POLÍTICAS A pintura de panoramas como representação ficcional da paisagem alcançava, com seus artefatos formais, uma conexão física, espacial e temporal com o espectador, produzindo nele uma experiência única e transcendental ao fazê-lo se conectar sensorialmente com uma realidade terrestre, natural e geográfica. 

 

Contemporaneamente, a pintura também projetou exemplos de uma realidade, mas a partir de uma perspectiva histórica. A recriação pictórica de eventos situados em um passado clássico se projetava como emblemas exemplares e moralizantes que questionavam a política do convulsionado século xix. Essas duas práticas, produzidas com diferentes fins e pertencentes a dimensões culturais opostas, têm pontos em comum com a obra de Thiago, tanto no nível formal e estético como na presença da paisagem e na representação e especificação de uma narrativa ficcional que tenta se conectar com uma realidade conjuntural e contingente.

 

A obra de Thiago aborda a contingência política como problema, recuperando essas dimensões pré-modernas para colocá-las em ação. A função da pintura é novamente redefinida, transformando-a em uma ferramenta para construir narrativas. Essas narrativas abordam a dificultosa tarefa de representar as realidades políticas, sociais e econômicas do Brasil e do continente americano em toda a sua complexidade e contradição; por isso, não são lineares, mas se apresentam como recriação de múltiplos eventos, que são explicitados por meio de variados elementos visuais, formando grandes collages pictóricos e escultóricos. Esses elementos são tomados de uma cultura visual contemporânea: imagens produzidas pelos meios de comunicação e também pelo mundo acadêmico, consequência das pesquisas antropológicas e culturais realizadas pelo artista.

 

Mas, para que o espectador possa perceber a dimensão e a enorme complexidade dessa realidade, manipulada diariamente pelo poder político e pela mídia, o artista a desdobra no tempo e no espaço. Nesse sentido, a dimensão cenográfica, na qual escultura e pintura se fundem com sofisticadas animações, persegue o objetivo, como estratégia formal, estética e narrativa de comprometer o espectador com uma experiência total, que o envolva tanto sensorialmente como intelectualmente. Em resumo: uma experiência que tome o espectador em uma vivência contraditória, dramática e transcendental.

Abordar as práticas da pintura é um inevitável exercício de hermenêutica. As ideias pré-modernas que atravessam a obra de Thiago Martins de Melo são consequência da busca e da esperança de renovar o estatuto da arte em nossa sociedade. Essa utopia perseguida pelo artista o conectaria novamente com o contexto em que vive cada indivíduo, chamando-o a ocupar um lugar político de vigilância, reflexão e ação.

2019 DUSHÁ, Germano; MATTOS, Josué; NEVES, Manuel; DOS ANJOS, Moacir; VAZZI PEDRO, Viviane. Thiago Martins de Melo. Rio de Janeiro: Capivara Editora

MINHA VOZ É FLECHA ARDENTE NOS

CATIMBÓS QUE VIVEM AQUI

Viviane Vazzi Pedro, 2019

 

Peças mitológicas, arquetípicas, identitárias, místicas e históricas de personagens e povos diversos, que se juntam no plano metafísico e, nas obras de Thiago Martins de Melo, formam um quebra-cabeça de narrativas, dispostas em vários graus, relevos e camadas pictóricas carregadas de simbologia. Thiago vale-se dessa diversidade de técnicas para articular os conteúdos, criando planos de leitura inconscientes, como quem procura dar vida a uma pintura cada vez mais carnal, situada na fronteira entre bi e tridimensionalidade. 

 

Em suas obras, Thiago tem reforçado o que o curador e crítico Gunnar Kvaran identificou como capacidade de “reinvenção da estrutura narrativa no universo da pintura”, algo que me parece ressignificar, também no conteúdo, o próprio uso e alcance conceitual dos tradicionais termos “antropofagia” e “canibalismo”.

 

Desde as primeiras séries, “O ciclo do cão” e “Tricéfalo em catarse”, Thiago expressa seu apetite canibalista pelas instituições e valores, realizando transgressões, uma devoração que os mastiga e recria como crítica – política, social e psicológica – antes de digeri-los ou excretá-los.

 

Nos autorretratos, Thiago transferia experiências literais para o seu corpo, colocava-se no lugar de outros, reinventava metáforas espirituais e arquetípicas, percorrendo caminhos e paisagens tão sublimes quanto inóspitos: “Ao me retratar junto com indígenas ou mestiços, eu me sinto como se estivesse pintando, ao mesmo tempo, meus amigos e a mim mesmo. O Estado, para todos nós, não condiz com os nossos valores”, explica.

 

Em seus primeiros trabalhos, o desejo, a libido e o encontro com a potência feminina parecem substituir o sentido da Paixão de Cristo. A “heresia” que isso representa socialmente alimenta o intuito de Thiago de questionar, triturar para despejar, como excrementos, o poder político autoritário, a crença monoteísta e o machismo de um “pai” inquisidor e castrador, cujas leis ameaçam a fusão carnal entre anima e animus.

 

O sexo e o êxtase amoroso conduzem à conjunção sagrada, ao rito transformador e transcendental. Inicialmente, esses sentimentos assumiam o embate contra as rígidas estruturas familiares, heranças, tradições morais tidas como civilizadas, religiões eurocêntricas, fundamentos do Estado e códigos de comportamento padronizados. Aos poucos, esse embate se espalhou para outras leituras do mundo.

 

Thiago Martins de Melo sempre se interessou por signos herméticos, por cosmogonias (especialmente a dos orixás) e pela diversidade de manifestações daquilo que chamamos de espiritualidade. Como amiga e ex-mulher do artista, pude testemunhar a influência que várias obras receberam de reflexões geradas pelo contato com guias e protetores espirituais, pelo Tarô de Marselha e por elementos que apareciam em sonhos. Às vezes, consigo estabelecer uma relação psicológica entre os eventos, rumos e crises marcantes na vida de Thiago e a produção de suas obras. Percebo, por exemplo, a influência do tarô na jornada dos seus personagens e na construção de narrativas, as quais são adaptadas e representadas segundo as metáforas pessoais de Thiago. Em trabalhos como xviii A lua, xv O diabo e vii O carro [pp. 207, 208, 209], a correspondência com os arcanos do tarô é direta e imediata. Mas, na maioria das vezes, o que me chama atenção é o fato de que essa inter-relação se dá de forma indireta, vestida de elementos barrocos e anti-hegemônicos do imaginário do artista, como é o caso, mais literalmente, da obra A Torre, ou a hora do galo impede o olho por olho [p. 133].

 

Os ciclos de morte, vida e renascimento presentes nas obras se relacionam às descrições das jornadas arquetípicas do tarô. Vejo correspondência entre personagens, por exemplo, entre A Íris fodida [p. 235] e “A Força – arcano xi”. E essa inter-relação também parece estar presente nas narrativas complexas, como na obra Psicopompos manguezal – para Tereza Légua e Tunga [p. 92], no qual estão presentes arcanos como “A Papisa – ii”, “O Louco – 0 ou xxii”, “A Lua – xviii”, “A Morte” e “O Mago – i”.

 

Na obra vii: O carro vemos uma releitura do arcano, na qual está representado o próprio artista, que procura dirigir forças emocionais opostas em uma guerra interior para guiar seu caminho voltado à expressão de sua vontade. Esforço para ter domínio e manter o equilíbrio entre dualidades e controlar seus instintos. Vemos uma espécie de carro ou carruagem que, embora tenha motor, é guiado por dois javalis, que correm em direções opostas. No xamanismo, o javali representa um ser que usa uma máscara amedrontadora para buscar, com vigor e coragem, a sua verdade. Para tanto, possui expressividade, inteligência, capacidade de pressentir o perigo e de se proteger. O desafio é controlar o ímpeto desses javalis em direções opostas. Um galo anuncia para o despertar, a consciência; a força do cavalo acentua a potência da escolha. É preciso ter motivação e autodomínio para guiar esse carro de pulsão de desejos. Ao mesmo tempo, é necessário direcionar esses javalis para servirem às escolhas desse homem, para que ele tenha a liberdade plena, não sendo dominado ou paralisado por esses animais.

 

Outra reencenação de arcano do tarô encontra-se na obra xv O diabo. Na pintura de ambiente sombrio estão representados os excessos da ambição material, sobretudo, pelo corpo, sexo e dominação dos prazeres. Os morcegos e urubus anunciam o risco da morte, da ruína, a necessidade de renascer para a luz e enfrentar as situações perigosas. O casal acorrentado representa tanto prisioneiros como possíveis colaboradores da energia materialista do diabo.

 

O arcano xvi do Tarô de Marselha, conhecido como “A Torre” ou “A Casa de Deus”, também é uma referência para o quadro A Torre, ou a hora do galo impede o olho por olho. A luz não vem do céu, mas do incêndio que destrói a capela e a figura do político coronel e autoritário que nela habitava. A falta é castigada em nome dos princípios de causa e efeito presentes no arcano do tarô conhecido como “A Justiça”. Quem anuncia o momento da queda e da ruína das estruturas é um galo, que pousa sobre os ombros da história de uma negra e de Anastácia, como em um totem de memória e ancestralidade da luta. Esse momento, de despertar e renovação, anuncia o efeito arquetípico de dois arcanos sobre essa jornada de luta: do “Julgamento” (arcano xx) e da “Torre” (arcano xvi). No topo do totem, encontram-se entidades espirituais e um negro com expressão revolucionária. Ao lado, celebram a vitória, em comunhão de ideais, as entidades espirituais caboclas e indígenas. Os olhos feridos do negro, do índio e do branco são conectados na hora desse juízo final. Porém, embora esperada e festejada por guias espirituais, a Justiça não vem do céu, é feita pelos homens, com ferro e fogo. Com a “Torre”, aquilo que não tinha base sólida desaba, o que não estava em consonância com a lei universal deve ser destruído para gerar a redenção. Tudo será recriado sob novas bases da “Casa de Deus”. O totem das pessoas, próximo aos céus, é mantido. Ao devorar estruturas, Thiago nos torna expectadores das paixões e, também, de suas narrativas justiceiras contra as atrocidades, formas de escravidão, ambição desmedida e controle da natureza, opressão e morte cometidas em nome do que lhe parece fundamentos cruéis e rançosos. O canibalismo de Thiago também parecem buscar uma quintessência de Deus, por meio da devoração do corpo e da entidade moral da deidade monoteísta. Por meio disso, ele se faz senhor de sua própria ética redentora da diversidade de expressões morais e psicológicas.

 

A fome de Thiago se estendeu para além das instituições e valores que castravam o seu próprio mundo. Olhou o universo a partir da complexa janela do seu ateliê, em São Luís, na Amazônia Legal maranhense. Dali, começou a enxergar questões que parecem ser locais, mas são reflexos do trator homogeneizante da globalização. Nas lutas contra esse trator, as dimensões global e local se interconectam, reforçam significados e características da região.

 

O preconceito contra saberes, crenças e cosmogonias leva Thiago a perguntar, em um dos primeiros trabalhos da série “Teatro nagô cartesiano”: Qual o lugar da alma no corpo? Ela estaria situada na glândula pineal, conforme defende o racionalismo cartesiano? Ou na região da nuca, como afirma a cosmogonia nagô? Como compreender a psiquê e a alma? Qual seria a geografia física da alma de diferentes povos? E como isso se traduz nas visões de mundo?

 

Essas questões levam Thiago a buscar conexões arquetípicas em tudo e, por meio dos signos híbridos e expressões sincréticas, aglutinar sistemas mais amplos de cosmogonias africanas, ameríndias, caribenhas, hindus, anglo-americanas e latinas, entre outras. Entretanto, isso o coloca diante de outro problema: como representar, por exemplo, a imagem atual do índio, do quilombola, do caboclo, do “não branco” ou do “branco pobre”, ante a idealização em que são retratados desde o século xvii?

 

Com isso, Thiago Martins de Melo acessa, intuitivamente, problemas que desafiam a antropologia e o pensamento social do Brasil e do mundo. A angústia da luta identitária de povos que reivindicam o reconhecimento, os tantos significados do território, desterritorialização e reterritorialização, os deslizamentos que, por vezes, unem ou negam a aglutinação cultural, sincretismo e mestiçagem. Entretanto, é da arte, do desejo e do sentir de Thiago que emergem suas verdades. Muito além de qualquer teoria ou politização, ele se pauta pelo afeto e pelo respeito à construção da imagem.

 

As formas de expressão chegam como aliadas para os “altares”, “ebós” ou “oferendas” – imagéticos e energéticos – realizados por Thiago. Assim como acontece com os diversos povos tradicionais, indígenas e quilombolas, para a defesa do seu território de criação e para o apoio da sua contestação político-libertária, Thiago invoca seus orixás, guias e entidades pessoais. As próprias obras trazem, muitas vezes, homenagens, ou “obrigações”, declaradamente prestadas aos seres espirituais que nutrem o fazer e lutar do artista, como Ogum (orixá), dona Tereza Légua Boji Buá, senhor Joaquim da Cachoeira (da mina) e tantos outros.

 

A pintura parece-me promover um ritual de alteridade entre expectadores (muitos deles brancos), pintor e personagens. Nesse ritual, tanto o artista quanto suas obras e expectadores podem atuar como “cavalos de santo” de entidades ou personagens, encarnando sentimentos, reverências e o reconhecimento de figuras, cuja expressão na sociedade, normalmente, é marcada por preconceitos, condenação, intolerância e violência.

 

O retrato e a presentificação de figuras sábias como pretos-velhos, por exemplo, não deixam calar a memória da escravidão e nos fazem refletir sobre a sua continuidade de tantas e novas formas. As pombas-giras, que bailam com o público nas obras do artista, apontam para o fato de que, em tempos contemporâneos, mulheres ainda são execradas, oprimidas, julgadas e violentadas por reivindicarem a liberdade sobre seu corpo, amores, trabalho, futuro e pensamento. O caboclo Tupinambá invoca a força da mata para ser reconhecido como caboclo amazônico e como indígena tupinambá, sem que uma identidade anule a outra, e sem que sua existência seja apartada da natureza. O Exu, temido como demônio, condenado ao desamor pelas religiões ocidentais europeias, nos faz indagar sobre a execução social ou condenação perpétua cometidas em nome do medo do diverso ou do racismo. Exu nos lembra, também, de nossos instintos renegados, da necessidade do gozo, das entranhas da dor e do submundo inconsciente. Ao ser festejado ou celebrado em ritual pelo “branco civilizado”, Exu liberta-nos e liberta-se reciprocamente “do pecado” para a dança, a irreverência, os prazeres da bebida, do fumo, do sexo e da dominação material.

 

A obra Martírio [pp. 138-41], exibida na 31ª. Bienal de São Paulo, é exemplo dessa lógica. Nela, os caboclos sagrados da umbanda e tambor de mina, que amparam as lutas dos heróis anônimos, como Sete Flechas e Ubirajara, são retratados tal como conhecidos em seus altares, com o cocar do índio apache americano. Thiago explica: “Eu vou, sim, colocar o cocar de índio norte-americano no Ubirajara e no Sete Flechas. Para representá-los como os amigos caboclos, preciso utilizar a iconografia de origem colonialista que marca sua representação, porque é com esta que me familiarizei, é esta que é conhecida como signo de poder pela umbanda e mina e que me motiva a pintar. Além disso, eles [caboclos] querem ser homenageados e representados da maneira em que são. É isso que conduz ao afeto”.

 

As personagens retratadas pelo artista – que muitas vezes têm as faces identificadas como “maranhenses” ou “amazônicas”, irreconhecíveis pelo resto do Brasil e do mundo –, são exemplificativas; representam pessoas universais, envolvidas em situações de resistência global. Os combatentes são indivíduos e grupos que reivindicam o reconhecimento do direito à identidade e da diferença dos seus modos de vida, a partir da experiência interrogativa, da necessidade de defesa do território, do enfrentamento à discriminação e da negação político-jurídica. Reivindicam a significação da diferença cultural e, por isso, representam um pensamento decolonial. Politicamente, denunciam os abusos do exercício do poder pelas agências governamentais e, no plano econômico, questionam as contradições do modelo desenvolvimentista e as formas de integração aos circuitos do capital mundial.

 

Para tentar ilustrar as conexões entre a narrativa pictórica realizada pelo artista e os fragmentos complexos, inspiradores e presentes no seu cotidiano, gostaria de contar a seguir uma história real, com ressonância presente.

 

Década de 1960, construção do Porto do Itaqui na famosa Baía de São Marcos, a segunda mais profunda do mundo, em São Luís do Maranhão. Para alguns, uma baía com “vocação econômica natural”, patrimônio da exportação. Para os que vivem, trabalham e constroem seus sonhos na região: morada de encantados, como dom Sebastião, com terra e águas guardadas pela princesa Ina, sua filha. Morada eterna de Gonçalves Dias, poeta que ali naufragou, em 1864, segurando Os timbiras. Terra vocacionada a ser lar e local de trabalho de centenas de famílias tradicionais, que vivem da terra, dos mares, do mangue, em relações de mútua cooperação. Populações que, por sua diferença reivindicada, são chamadas de atrasadas ou culpadas por barrar o “desenvolvimento da nação”.

 

A construção do primeiro píer do Porto do Itaqui, na década de 1970, parecia amaldiçoada pelos encantados. O mar vomitava cada edificação erguida pelos governos. As empresas, temendo os crescentes acidentes com operários e naufrágios, assim como os trabalhadores, espantam-se com as assombrações noturnas do navio de dom Sebastião. Era preciso conter o repúdio, agradar à princesa Ina, convencer as comunidades de que o projeto traria o “desenvolvimento” e de que um futuro bolo econômico cresceria e seria, um dia, repartido, caso as populações locais sacrificassem suas terras e vidas em nome do porto. Para ritualizar o sacrifício, o governo do Estado convoca as comunidades e terreiros para uma grande homenagem à Ina, com a intenção de que esta abençoe o porto. Tambores tocam. Pescadores, famílias de camponeses, marisqueiras, quilombolas e catadores de caranguejo dançam com os representantes do governo, pedindo a benção ao “desenvolvimento” simbolizado pelo porto. Esperanças são iludidas. Coincidência ou não, o projeto se consuma, e hoje o porto abocanha, crescentemente faminto, as comunidades, seus territórios e a natureza, que ali resistem por não acreditarem mais no apregoado “desenvolvimento”.

 

Entre 2014 e início de 2017, um novo porto tenta se instalar na mesma Baía de São Marcos, sem licença nem autorização judicial, passando com o trator sobre as casas de moradores do povoado de Cajueiro, na capital São Luís. Em poucas horas, 21 casas são derrubadas entre o Natal e Ano-Novo. As dezenas de comunidades rurais da Ilha do Maranhão se revoltam, sentem na pele a mesma agressão e desonra; congregam-se na luta pelo Cajueiro e pela defesa de seus territórios. Como repertório, tocam os tambores na frente do Palácio do Governo do Estado. Agora, em plena capital de Estado brasileiro, camponeses, pescadores, marisqueiras, indígenas e quilombolas ressuscitam e reformulam um cântico indígena usado contra os colonizadores para a defesa da comunidade do Cajueiro. Com isso, os políticos, grileiros e empresários arrepiam-se com o brado: “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não assanha o Cajueiro”! O confronto evoca o sagrado: a terra é nossa! É de quem aqui trabalha e vive! Não mexam conosco, aqui está o Terreiro do Egito. Aqui vive a princesa Ina, enfurecida por ter sido enganada. Tradições diversas, reunidas pela mesma dor de serem as comunidades escolhidas como sacrificadas por “projetos desenvolvimentistas”, dando-se às mãos numa luta à qual se referem como “a de Davi contra Golias”.

 

No caso do conflito socioambiental, o Terreiro do Egito e seus encantados, rei dom Sebastião e princesa Ina viram atores do confronto político. O terreiro, fundado em 1864 e extinto no dia 14 de dezembro de 1980, é um dos mais antigos do Brasil e notório pelos praticantes das religiões de matriz africana. Nesse lugar, símbolo de resistência centenária, ainda habitam as entidades e encantados que são ali festejados e recebem homenagens em várias épocas do ano. Nos dias de festa, segundo relatos dos moradores locais, avista-se o navio do rei dom Sebastião. Pai Euclides, um recém-falecido pai-de-santo maranhense, responsável até 2015 pela prestigiosa Casa Fanti Ashanti, também contava que o Morro e Terreiro do Egito, em Cajueiro, servia de nova morada e “até de quilombo. Alguns negros que vinham fugidos de Cururupu, Guimarães, passavam por lá embarcados […] tinha muito nêgo que se jogava no mar, por conta da opressão, de não querer se submeter a essa coisa toda”.

 

Assim, o Terreiro do Egito não era apenas a moradia de encantados mas local de “invenção da liberdade”. É nesse sentido que a história do Terreiro do Egito e de sua responsável, dona Maria Pia, misturam-se: “Maria chegou da África como escrava pequena no bracinho da mãe dela […] Pegou a conhecer a vida já de sete anos pra cá. Começou a fiar a rede no tear mais a mãe dela, a fazer as coisas que o branco mandava. Até quando inventou a liberdade”.

 

Thiago busca também “tecer” os signos e memórias e “inventar a liberdade” dentro de seu espaço artístico particular. Tudo parece comandado pelo elemental do fogo e por um ímpeto transformador, que destrói para recriar. Ruptura comandada pelo arcano da “Morte” do tarô, pela espada de Ogum, pelo martelo de Nietzsche, pelo fogo tocado pelo negro, pelo escancarado poder feminino da pomba-gira, pela flecha do indígena. Fé de que a destruição da “Torre” redireciona um “Carro” de forças impetuosas, como as do destino, o senhor da “Roda da Fortuna”, fazendo o infinito renascer do “Mundo”. Vida e morte representados pela fertilidade do mangue. A santa loucura das paixões, o inferno dos prazeres guardado por Cérbero, o cão de três cabeças; a perfeição arquetípica da figura alquímica da Rébis (macho e fêmea fundidos para ressignificar os gêneros); o questionamento ao cartesianismo, a mitologia hindu, indígena, iourubá; os tetos de estruturas rígidas de igrejas e casas arrebentados; as correntes que se arrastam reivindicando a memória de heróis anônimos e escravos; a aranha Anansi recontando, à sua forma, as histórias dos negros; a cruz que sodomiza e violenta; o nascimento do mestiço redentor...

 

Das obras, eu ouço tambores no inconsciente, como um sopro presente no Juízo Final do “Julgamento”. Em alguns combates, as personagens tomam emprestados, como suas armas, signos sincréticos de outros. Em outras batalhas, as personagens simplesmente não aceitam miscigenações, hibridismos ou camuflagens, admitem tão somente os signos que representam sua autoestima, deixando claro: “Um caboclo não é serafim”.

 

O sentido das narrativas do artista é revelado por um “inconsciente ótico e pulsional”. O entrelaçamento das representações imagéticas do corpo, do trabalho e seus títulos nos fornece valiosas chaves para leitura. Entretanto, na maior parte das vezes, não é possível uma compreensão completa, imediata ou apressada das obras. Seus elementos complexos e significantes parecem chegar depois, operam no plano da memória, do inconsciente, do imaginário, dos insights, de revelações, esquecimentos ou preconceitos que advêm de uma memória reprimida de histórias que são nossas, da humanidade.

 

Como previsto nos princípios de magia, os acontecimentos das narrativas e seus signos ecoam nas diversas dimensões, tempos e espaços, surtindo efeitos energéticos, manifestando-se com sincronicidades e propagações nem sempre sequenciadas. O ebó pictórico ou processo artístico ritual de Thiago tem a força mágica da alquimia, da cura e dos tambores de mina e da umbanda, dos cânticos que dão impulso aos trabalhos forçados e monótonos. As pinturas têm ainda a rebeldia e a resistência cotidiana dos povos, por meio da feitiçaria contra o colono, do rogar de pragas ao sinhô, do envenenamento de capitães do mato, historicamente empregados como resistência por negros escravizados, indígenas e, até mesmo, camponeses da Amazônia contemporânea, contra os senhorzinhos e coronéis.

 

Como descreve e vivencia Jung em seu livro vermelho, ao entrar em contato com o signo, Thiago parece acessar o mundo, talvez em uma experiência artístico-social visionária de nossos tempos.

 

Pergunto-me, por exemplo, se, ao pintar com meses de antecedência as ocupações com barricadas das marquises do Congresso Nacional brasileiro, a invasão da “lama preta” aos povoados e ao tratar, em anos anteriores, do desastre das “feridas do ferro sujo” [pp. 108-09] causado pela mineração, estaria o artista conectado a uma espécie de Neuromancer? Adentraria, via signo, um ciberespaço quase físico, espécie de matriz programada na qual se vislumbram as causas e efeitos dos acontecimentos? Ou teria acesso às imagens presentes no mundo das ideias, de Platão, no qual os fenômenos idealmente se replicariam, com as distorções da realidade, em nosso universo físico? Anteciparia, à frente de nossos tempos, as batalhas que nos aguardam? Questiono, ainda: será que tem mesmo sentido a crença de Thiago (alquímica) de que seu ebó pictórico traria para baixo (para o mundo físico) o que já está acima (no mundo espiritual) e vice-versa? 

 

A meu ver, Thiago, acima de tudo, tem consciência de que o signo tem poder e faz dele sua “pajelança artística”. Junta-se aos seus caboclos, orixás e guias, com o mesmo ímpeto justiceiro: “Se me der a folha certa e eu cantar como aprendi, vou livrar a terra inteira de tudo o que é ruim”. 

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2019 DUSHÁ, Germano; MATTOS, Josué; NEVES, Manuel; DOS ANJOS, Moacir; VAZZI PEDRO, Viviane. Thiago Martins de Melo. Rio de Janeiro: Capivara Editora

BARBARA BALACLAVA

Moacir dos Anjos, 2019

 

Ao longo de uma década, Thiago Martins de Melo desenvolveu uma obra em pintura que se afirma, entre atrativa e estranha, como uma das mais singulares de sua geração no Brasil. Em seus trabalhos, quase sempre feitos em óleo sobre telas de grandes dimensões, não há qualquer lugar para a contida expressão abstrata que marca as obras de muitos pintores brasileiros desde a década de 1950. Tampouco se encontram nela vestígios da representação elogiosa e pacífica de personagens e paisagens nativos, tão cara aos pintores modernistas do país e àqueles que ainda agora animam essa tradição. Suas pinturas, junto às realizadas por poucos outros no Brasil, assentam-se em bases distintas, tanto em fatura como em assunto. São feitas de pinceladas rápidas e fortes que acumulam, sobre o suporte usado, tinta bastante para criar, em cores vibrantes, acidentados relevos e planos, ecoando uma linhagem expressionista que, embora criticamente reconhecida, nunca se firmou hegemonicamente no país. Procedimento de construção que o artista julga adequado para lidar com a gravidade e a urgência dos temas que lhe afetam e importam: as violências que os detentores do poder real historicamente impõem a quem escape às normas que estabelecem ou desafie os privilégios de classe, cor e gênero de que desfrutam. Em particular, seus trabalhos se debruçam sobre os abusos por séculos cometidos contra as populações de origem indígena e negra no Brasil. São pinturas que articulam e amalgamam forma e conteúdo para narrar histórias dolorosas, fragmentadas e inconclusas. Histórias que não são somente, porém, de aniquilamento do outro subjugado pela força, mas também de resistências. 

 

O fortalecimento da vontade de contar eventos complexos que envolvem muitos personagens e fatos fez com que os trabalhos de Thiago Martins de Melo se tornassem insuficientemente extensos no decorrer dos anos, não importando o quanto crescessem as dimensões de suas pinturas. Passaram por isso a incluir, articulados ou não às telas, objetos firmados sobre paredes e chão. Esse uso mais alargado do espaço é patente no conjunto de pinturas, esculturas e coisas diversas que formam o trabalho chamado Martírio (2014) [pp. 138-41]. Em duas grandes telas, o artista pintou, sobre a paisagem de uma Amazônia quase arrasada, os rostos de muitos homens e mulheres que foram mortos lutando contra a devastação simbólica e material incessantemente promovida por aqueles que somente enxergam, naquela região, oportunidades de ganho patrimonial alto e imediato, seja através da extração de minérios, do extrativismo predatório ou do uso da terra da mata para projetos agropecuários. A violência desmedida deferida contra quem se opõe a esse intento privado (muitas vezes com suporte governamental) está também indicada nas muitas cabeças esculpidas de negros, índios e mestiços que, envoltas em fios de arame farpado, são fixadas em estruturas verticais que se assemelham a instrumentos de martírio decorados com armas e motoserras. O fato de essas estruturas também evocarem formas totêmicas sugere, porém, que não se perdeu a luta ainda, e que o conflito, de carne e de espírito, segue um curso aberto. Sugestão reforçada pelas figuras de índios que parecem guardar o ambiente, tornando-o não somente um registro de violências desmedidas mas também um modo de honrar aqueles que nunca vão se curvar aos que destroem formas de vida ancestrais.

 

A estratégia de deixar as pinturas transbordarem para o espaço não foi, todavia, suficiente para satisfazer o intento de contrariar histórias dominantes e motivações oficiais, fazendo com que imagens em movimento fossem gradualmente incorporadas às construções de Thiago Martins de Melo. Tomando as próprias pinturas como arquivo de cenas, o artista passou a articular fotografias de fragmentos de muitas delas em curtas animações stop motion, abrigando ali o que mesmo telas e objetos de grandes dimensões não poderiam conter. Exibidas em monitores incrustrados em pinturas, essas animações expandiram no tempo a capacidade narrativa daquelas, tornando-as formas de expressão híbridas e abertas. É no filme Bárbara balaclava (2016) [pp. 257-73], contudo, que Thiago Martins de Melo dá um passo além na voracidade de fala que sua obra exibe, bem como no desejo de expandir os sentidos da produção pictórica mesmo quando esta não está materialmente exposta. Durando pouco menos de um quarto de hora, o trabalho edita e anima, de modo acelerado, imagens parciais de quase quatro mil pinturas em pequeno formato e de outras poucas no usual tamanho maior, feitas pelo artista especialmente para serem usadas nesse projeto. 

 

Se Bárbara balaclava condensa e alarga a ambição narrativa que Thiago Martins de Melo demonstra em sua trajetória, traz inalterada, senão ainda mais firme, a vontade de desafiar narrativas que justifiquem ou normalizem práticas de dominação no país. Nesse sentido, o filme pode ser entendido como o esboço de uma contra-história do Brasil, feita mais de sugestões ou pedaços do que de um discurso escorreito e unificado. O que não implica deixar de apontar com clareza, nas torrentes de imagens que se sucedem no trabalho, causas e consequências das desigualdades que fundaram e sustentam o país. O título do filme faz referência imediata às máscaras de tecido que, originalmente usadas para proteção contra o frio, servem para a ocultação da identidade de policiais em ações repressivas e, principalmente, daqueles que se insurgem contra formas institucionalizadas de violência social e precisam se proteger de represálias de quem detém o poder de fato. Que servem para resguardar a identidade daqueles que são considerados párias ou bárbaros por leis e convenções, tal como implicado, não sem ambiguidade, no título do trabalho. Daqueles que se assumem sem rosto somente para lutar, paradoxalmente, por seu direito de ser visto e escutado.  

 

Em edição vertiginosa de imagens – acompanhada de visceral trilha sonora –, Bárbara balaclava exibe cenas de conflito e confronto nas histórias recente e distante do Brasil. Avança e recua no tempo para deixar clara a longevidade dos processos de dominação violenta que expropria, por séculos a fio, riquezas materiais e simbólicas das populações nativas do país. Para atestar, em paralelo, os mecanismos de subjugação corporal e psíquica imputados aos milhões de mulheres e homens negros escravizados no passado do Brasil e que, transmutados em aberta ou dissimulada discriminação racial, alcança os seus descendentes atuais. Ao compor esse esgarçado painel social, Thiago Martins de Melo inscreve disputas contemporâneas por terras ou ideias em uma persistente narrativa de exclusões e apagamentos (figurados e físicos) que atravessa a existência do país. Em simultâneo, contudo, mobiliza memórias, mitos, crenças, rituais, sexo e tudo que resiste à morte e fortalece corpos para contar uma insistente história de insurreição daqueles povos e de todos que com eles tecem alianças e laços. Aproximando tradições e cosmogonias insubordinadas às normas colonizadoras de ontem e de agora, apresenta a continuidade, ao longo dos séculos, de uma potência sublevada que resiste à dor e que desafia a arma. Apresenta guerreiros míticos que são, alternada ou concomitantemente, índios e negros, homens e mulheres, carnais e espirituais, bárbaros e civilizados. Que usam outras balaclavas como instrumentos táticos de luta e que combatem um destino que lhes foi imposto como imutável. É um filme que, na articulação temporal que faz entre pinturas e sons, desapazigua disputas e aponta danos infligidos a tantos. É um filme que ignora e subverte o que é dado e que faz, por isso, política. 

2019 DUSHÁ, Germano; MATTOS, Josué; NEVES, Manuel; DOS ANJOS, Moacir; VAZZI PEDRO, Viviane. Thiago Martins de Melo. Rio de Janeiro: Capivara Editora

O SUINDARA, OS SÉCULOS E OUTRAS HISTÓRIAS

Germano Dushá, 2019

Rasga mortalha: o grito da coruja afia-se à frente de seu vulto branco. De voo baixo e silencioso, habita a boca da noite. Som de pano sendo esfarrapado, porta consigo mau presságio.

 

Reza uma lenda antiga, comum no Norte e Nordeste do Brasil, que uma jovem carpideira (mulheres pagas para chorar em velórios alheios), ao enamorar-se de um moço, foi assassinada a mando da mãe do rapaz, uma rica condessa que fez pouco gosto do romance. Suindara, como era chamada, muito querida por todos, foi enterrada em um belo mausoléu, no qual se esculpiu a imagem de uma coruja branca e corpulenta – à semelhança da falecida. Eliel, seu pai, um poderoso feiticeiro, acabou por desvendar nas cartas do tarô o ocorrido e executou uma magia para se vingar da senhora. Ao realizar o trabalho, penetrou o espírito da filha na estátua que ornava seu túmulo, fazendo com que ela criasse vida própria. O bicho, então, atravessou a aldeia e voou até a janela do castelo onde dormia a mandante do algoz.  Ali piou seu canto, estranho e aterrorizante, que arrepia a espinha, como uma roupa que rompe. Ao amanhecer, a mulher foi encontrada sem vida. Sobre o cadáver, suas vestes de seda jaziam fatalmente rasgadas.

 

Crendice certa, a Suindara prenuncia quando alguém está em vias de se finar. Quem a vê sobrevoando as casas logo teme pelo pior. Bom sinal é que não é. Essas aves, como diz o conto de Moreira Campos: “Têm voo brando, impressentido, num cair de asas leves, como num sopro de morte. De repente, dá-se conta de sua presença, das asas de pluma sem ruído. [...] Elas rasgam mortalha, agourentas, cortam o silêncio, sacudindo a vigília dos doentes”.

 

No filme de Thiago Martins de Melo, Rasga mortalha (2019) [pp. 275-88], o mito em torno da coruja Suindara funciona como disparador, como espécie de vetor metafórico para pensar criticamente e transcender uma compreensão fatalista dos conflitos correntes na história do Brasil. Entre um céu caído e uma terra que ainda colhe grandes os frutos nefastos da escravidão, deixa claro os assombros que acompanham os subjugados e os que se opõem àqueles que se pretendem donos do chão. O risco é iminente. A sombra da morte, a todo instante, se faz presente.

 

A rasga mortalha anuncia a hora do crime. O segundo em que se faz ver, no horizonte do mar vasto, a imagem impossível das caravelas ou, nas esquinas apertadas das favelas, a lataria terrível dos caveirões. Diz quem é o “Cabra Marcado para Morrer”, cada vez que as foices irão descer, na esteira das cruzadas e inquisições. Neste estado de exceção, a serviço de uma economia das crises e da gestão de escassez, o grito da morte está na manutenção da abissal desigualdade; na varredura do contraditório a golpes de cassetete; nas panelas que batem em bairros nobres, ruminando, saliva de sobra, o anti-intelectualismo ávido e desumano, o conservadorismo medieval. Está na normatização acachapante organizada para erradicar as formas de vida. Sob a escola dos tiranos em solos tropicais, apita a soberania daqueles que ditam “quem pode viver e quem deve morrer”, manifestação máxima do poder – bem articulado, engravatado, mesmo quando não.

 

Feito a partir de milhares de pinturas e desenhos, o curta-metragem em stop motion reúne arquejante um amontoado de referências e eventos históricos. Em sua gênese, encontramos dos versos de Gonçalves Dias à lâmina ligeira de Tuíra Kayapó; do conceito de necropolítica, cunhado pelo camaronês Achille Mbembe, ao messianismo verborrágico de Glauber Rocha; da mitologia tupinambá à atual luta dos Gamela no Maranhão; da literatura de cordel aos panfletos revolucionários; de Canudos e Contestado às ocupações urbanas; dos rituais xamânicos às guerrilhas latino-americanas; da memória de Dina do Araguaia às metamorfoses do Subcomandante Marcos.

 

Com o pulso da tradição popular, o artista contorce os séculos, atracando-os entre si, comprimindo-os até se banharem com as cores mais fortes uns dos outros, de modo a confundirem-se numa voragem que faz rodopiar “as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas”. Num só tiro alucinado vamos da pedra à democracia, da colônia às grandes cidades, das bandeiras à Brasília. E tudo isso entre questões públicas e dramas pessoais, acesso e revolução, tesão e tanatologia, pajelança e submetralhadoras, danças e decapitação.

 

Anacrônico, barroco e catártico, joga violentamente com inúmeros episódios e signos, redistribui papéis e protagonismos, evoca diversas vivências, visões, práticas e pontos de vista. É quando a epistemologia canônica se dobra, expõe suas fissuras, fazendo emergir novos atores, novas histórias, ou melhor, tornando possível que assumam seus devidos lugares, conforme correm os desejos. No que conta o caso, opera por muitos eixos, não se deixa conduzir por uma única e linear sucessão dos fatos. É divergente, abre dissenso. Do fluxo narrativo escorre uma cosmologia colérica: ao som de tambores e fuzis, uma multidão de gestos jorra para abordar a brutalidade material que desnuda a crueza da vida, mas também para falar dos transes e transcendências que apontam para o infinito. Pensa-se com a cabeça, com a cintura, com o cu. É tudo o tempo todo e ao mesmo tempo. É a biologia por toda parte, os impulsos fisiológicos, os estados de espírito.

 

No centro estão os camponeses, os índios, os quilombolas, os sertanejos, os favelados, os imigrantes, os homossexuais, transexuais, os artistas e todos aqueles aos quais não são permitidos espaços ante um projeto único e totalizante de estado-nação. Se sofrem com contínuas investidas genocidas, não deixam de firmar ponto comum na energia universal que mobiliza os levantes do povo, as escolas da rua, as práticas da floresta, os esoterismos cotidianos, os gêneros e sexualidades desviantes, sempre prontos para vir à tona de diferentes formas, em diferentes lugares e a qualquer instante. Se há combate, há potência para se viver livremente: arte, comunidade, misticismo, ritual, torso descoberto, sexo com beijo, com abraço, com mijo. A “retransfiguraçãoétnica”, o devir-animal e a antropofagia do mestiço que virou índio, do sujeito que virou onça e que agora saboreia uma perna, depois um pé, um braço. Do homem barbudo com seios e vagina, da mulher com seios e pênis, ambos se comendo um ao outro.

 

As figuras, os garranchos e os verbos formam clarões oníricos que fazem desvelar toda a historiografia da humanidade numa batalha épica, num gole de seiva ou num banho de rio. Como as cosmovisões e estratégias de jogo que nos fazem encarar nos olhos a miséria humana, mas que trazem juntamente o ímpeto absoluto e contínuo que alimenta as resistências. Diante da guerra e da razão, faz-se festa e imaginação. “O sonho é o único direito que não se pode proibir”, e o mundo é mesmo dos tenazes, daqueles que insistem em experimentar sua liberdade. Que se fale, então, “de sexualidade, de respeito, de laicidade, de racismo, de LGBTfobia, de machismo. Pois falar sobre esses temas é se comprometer com a vida em suas múltiplas manifestações”.

 

Tudo é emergência, é ocasião. E o momento ético é decisivo. Faz ressoar a fala de Hélio Oiticica, comentando seu Bólide em memória do amigo Cara de Cavalo, procurado por crimes audaciosos e assassinado pela polícia no Rio de Janeiro: “Esta homenagem é uma atitude anárquica contra todos os tipos de forças armadas: polícia, Exército etc. […] pois reflete uma revolta individual contra cada tipo de condicionamento social. Em outras palavras: violência é justificada como sentido de revolta, mas nunca como o de opressão”. Faz zunir o Negro drama dos Racionais MC’s: “Olha quem morre/ Então veja você quem mata [...] Eu era a carne, agora sou a própria navalha”. O que oprime deve aguardar o seu contraponto, leis injustas devem ensejar as desobediências, e as tiranias que submetem devem esperar corpos insubmissos. É das insurgências e reinsurgências que virá o golpe principal, messiânico, radical.

 

Rasga mortalha: o espectro alvo da coruja traz no rastro o berro estridente. Quem viu e ouviu já sabe: o óbito logo vem. Suindara apavora o olho, dói o ouvido, implacável agouro, corta o pano do febril. Carrega em si o signo da morte. O corpo é tomado por inteiro. Paroxismo final, êxtase maior. A respiração acelera, ofega, arde no peito. Os braços se atêm ao tronco. Mãos retorcidas nas costas, coluna inclinada. O apocalipse faz a curva. O indivíduo no limite responde: todo dia é dia, e cada vitória conta. Enchem-se os pulmões para declamar mais alto que o anúncio da coruja, em contrafeitiço, os versos do poema atribuído a Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião: “Meu rifle atira cantando/ em compasso assustador/ Enquanto o rifle trabalha/ minha voz longe se espalha/ zombando do próprio horror”. Ou o que salta à garganta de I-Juca-Pirama, que ao se deparar com a ceifa se permite chorar, se necessário guerrear e, quando for a hora, ser digno de morrer: “Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi:/ Sou filho das selvas,/ nas selvas cresci,/ Guerreiros, descendo/ Da tribo Tupi [...] Guerreiros, nasci:/ Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte;/ Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi”. A morte como morte e a morte como vida. Nenhum sangue escorre em vão: morre um, nascem dois. É a morte que irriga o chão.

2019 DUSHÁ, Germano; MATTOS, Josué; NEVES, Manuel; DOS ANJOS, Moacir; VAZZI PEDRO, Viviane. Thiago Martins de Melo. Rio de Janeiro: Capivara Editora

THIAGO MARTINS DE MELO*

Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz, 2012

In: Zona Tórrida: Certa pintura do Nordeste [p. 78-80], Santander Cultural, Recife, Brasil,

O desejo na obra de Thiago Martins de Melo – fora da simetria entre voyeurismo e exibicionismo - só tem paralelo no Brasil na obra de Maria Martins (L’impossible), Flávio de Carvalho (Nossa Senhora do Desejo) e Adriana Varejão (Filho bastardo). A fotografia de Alair Gomes, por exemplo, é o êxtase do voyeur e a produção de Antonio Dias na década de 60 é a violência do voyeur – são dois regimes econômicos do desejo visível. No entanto, a primeira instância na pintura de Martins de Melo é a exposição de si mesmo. Por isso, a qualidade dessa explicitude não pode ser comparada à recatada Louise Bourgeois. Só Georges Bataille - Histoire d’O, Madame Edwarda, L’Érotisme - daria conta de tanta complexidade. Fillette de Bourgeois é o aparato genital do homem (para ela, “o frágil absoluto”) tão exposto como o da mulher em L’origine du monde de Gustave Courbet e Iris de Auguste Rodin. A exposição hiperbólica, direta e íntima, não é crueza da mecânica, mas a relação afetiva e violenta com o alvo (o alvo sexual está sob o domínio de uma zona erógena). Courbet pintou antes de Freud - a ciência apenas começava a compreender o psiquismo do desejo. Thiago Martins de Melo põe Courbet, Rodin e Bourgeois em sua cena pictórica. Bourgeois esculpe depois de se confrontar com a dúvida de Sigmund Freud (a única pergunta que ele diz não saber responder seria o que deseja uma mulher) e a afirmação de Jacques Lacan (a Mulher não existe) e entendê-las a seu próprio modo. A pintura de Martins de Melo desvela tais limites.

 

A pintura de Martins de Melo, como a obra de Antonio Dias ou Tunga, é campo da fantasmática. Incorpora a carnalidade como o corpo sexualizado do pintor transferido à pintura. Sem essa aparente redundância reiterativa da carne não se dará conta das instâncias do desejo e do corpo, do signo material da pintura e da relação fenomenológica entre pintor e pintura lançada por Paul Valéry e conceituada por Merleau-Ponty. O pintor para Valéry e na fenomenologia de Merleau-Ponty de L’Oeil et l’esprit empresta seu corpo à pintura1. O corpo emprestado pelo pintor Martins de Melo é o corpo sem órgãos, a máquina desejante2. O desejo se encarna na vontade material. Essa temperatura de obra compõe certa história do olho: afinal, L’origine du monde não pertenceu a Jacques Lacan? Afinal, Lacan não se casou com Silvia, ex-mulher de Bataille? Esse Thiago, pintor-psicólogo que descrê em pudor moralista em pintura, pode estar no lugar de Jacques ou de Georges, ou dos dois? Não há como classificar o inclassificável. Não há o imencionável, o socialmente indizível por recato, privacidade ou moralidade, mas também não há auto-exposição egótica: isto é o próprio território da fantasmática que não vem em imagens mentais nem verbais, mas se encarna como pintura. O que se vê é a emergência do possível. Surge com uma violência avassaladora, com uma urgência de visibilidade capaz de construir afasia em resposta ao olhar. Despida de estratégias de dissimulação (a robe mouillée da Vênus de Milo seria o oposto dessa estratégia de enunciação). Um quadro expande as possibilidades visíveis do íntimo.

 

Diante do canibalismo melancólico de Pierre Fédida – o luto antecipado decorrente da vontade de devoração do parceiro no coito3 - conclui-se ser preciso expulsar a morte. É necessário espancar o esqueleto e não dançar com ele como em Ensor e em toda Todtanz da cultura europeia nórdica. A batalha de tesouras e a linguagem das lâminas, entre a castração e o rompimento do hímen. Sem culpa e sem qualquer vergonha, como se personagens de Georges Bataille se tornassem vivos4. Os sentimentos de culpa, vergonha ou repulsa transferem-se para cada espectador, se for o caso. Não há estratégias de choque, mas de presentificação da cena. 

 

Fundamentalmente, Martins de Melo pinta dípticos. A separação entre duas telas não decorre da intenção ingênua de produzir um díptico em que duas partes se conjugam na formação de uma imagem, nem provém da penúria (não dispor de uma tela maior). Isto é corte. Daí ser a cisão da superfície uma operação indissociável. A linha orgânica de Lygia Clark reitera a separação do que se deseja unido e uno no quadro, o abismo da falta e fenda da incompletude. Pulsões de vida, movimentos da libido, fantasmas de desejo - o signo pictórico é trabalho libidinal, como na escultura de Bourgeois. O esforço do pintor é manter a imbricação entre o insconciente – um possível projeto de uma escrita na linguagem do inconsciente e não sua ilustração - e a experiência pulsional do pictórico, do inescapável confronto com o signo material da linguagem. Essa relação mantém a coesão tramada entre significante, significado e significação.

[1] Maurice Merleau-Ponty. L’oeil et l’esprit. Paris, Gallimard, 1986, p.

[2] Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: capitalism and schizophrenia. Transl Robert Hurley, Mark Seem and Helen R. Lane. Minneapolis, Minneapolis University Press, 1998.

[3] Pierre Fédida. Le cannibale mélancholique in Destins du cannibalisme de Nouvelle Revue de Psychanalyse. Paris, Gallimard, 1978, vol. 6, pp. 123-127.

[4] BATAILLE, Georges. Guilty. Trad. Bruce Boone. Venice, The Lapis Press, 1988, p. 13.

THIAGO MARTINS DE MELO

Solange Farkas, 2019

 

A produção de Thiago Martins de Melo desenha um capítulo muito particular na história cíclica da retomada da pintura por novas gerações de artistas brasileiros. Agônica e convoluta – barroca, na palavra que prefere usar –, sua obra dá forma a um imaginário que, emanando da experiência inconsciente de um, atinge e expõe o que de tortuoso e recôndito se enraíza na história de muitos. Se alinha-se à onda crítica de viés pós-colonial que ora varre o mundo, é pela contingência de trilhar uma senda muito própria: lutando guerras, cumprindo ritos, frequentemente mortos ou vencidos, seus personagens povoam um amálgama pulsante de escuridão e de camadas de tempo, remetendo a uma herança viva e presente de devoração, aculturação e aniquilamento.

 

Estruturas de pensamento de naturezas diversas informam essa pintura. Artista “desde sempre”, Martins de Melo forma-se em psicologia e trilha um percurso acadêmico que o leva à antropologia, à filosofia, à história, à economia; ao mesmo tempo, interessa-se por alquimia, por percepção extra-sensorial, pelo universo simbólico dos cultos afro-brasileiros e indígenas. Alimentada por saberes supostamente excludentes, sua cultura sincrética encontra a vocação narrativa: se cresce assombrado pelas imagens barrocas dos livros da biblioteca de um casarão colonial em São Luís, também se vicia em quadrinhos e cinema.

 

Curioso pensar que suas primeiras tentativas de interação com instituições de arte tenham-no frustrado a ponto de imaginar que havia um interdito mercadológico à pintura figurativa. Chega a se afastar da arte por esse motivo, o que não duraria. Depois de uma crise, sua produção avança a partir de uma curiosidade voraz sobre si mesmo e sobre o mundo; sua prática é, a um tempo, exercício expressivo e forma de tratamento. “Só pinto sobre aquilo que quero entender”, diz, em entrevista. “A pintura é uma arena na qual posso me aprofundar em questões impostas a mim pelo mundo, me utilizando do canal aberto pelo signo.” Vive na pintura uma experiência libertadora, mas também limítrofe, assemelhada às epifanias, alucinações e êxtases; catarses que descortinam memórias coletivas de genocídios, opressão, escravidão e guerra.

 

Tendendo a avolumar-se pela violência do gesto, a vibração das cores e a força vulcânica da fabulação narrativa, sua pintura ora se desdobra em formas escultóricas, como Martírio, 2014, exposta na 31ª Bienal de São Paulo, ora compõe sequências vertiginosas, como em Bárbara balaclava, em que os arcanos do Tarô sinalizam o percurso de uma mártir anônima, do massacre de sua aldeia ao renascimento espiritual na mítica Pindorama. 

 

Seja ao reencenar batalhas entre povos originais e colonizadores – talvez em busca de novo desfecho –, seja ao representar-se a si mesmo enfrentando fantasmas que empunham motosserras, as histórias que emergem na pintura do artista rompem violentamente a face sempre plácida daquilo que é corriqueiro, visível, aceito e acordado como sendo a totalidade do real. É para isto, afinal, que evoca sangue, santos e símbolos. “Não vejo sentido em colocar uma imagem no mundo se não for para abrir uma ferida no tecido artificial da cultura”, diz. 

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